Consumir entretenimento é, em boa parte, um exercício de repertório. Se você tem apresso especial por algum determinado gênero de cinema, por exemplo, tende a buscar mais obras que estejam dentro daquele gênero. Se fizer isso por algum tempo, invariavelmente vai acabar percebendo os arquétipos contidos de maneira quase inescapável à essa categoria cinematográfica e, quando isso acontece, há a inexorável descoberta que tira boa parte do brilho daquilo que, outrora, lhe ofuscava a visão: todo filme de um determinado gênero é só um remix de elementos narrativos que contam, basicamente, uma mesma história. Não há problema nenhum nisso, é claro. O segredo para alcançar o espectador é sempre inovar na forma enquanto tenta mascarar um conteúdo sem muita novidade e isso, pelo menos nos últimos anos, parece ter ficado tão difícil para a indústria de animações japonesas que eles resolveram simplesmente desistir.
Embora animes como Dr. Stone e Cells at Work tragam um ar de inovação arriscado em um mercado bastante competitivo, os grandes sucessos da atualidade parecem inseparáveis do esgotado estereótipo do garoto fraco ou estúpido que teve uma infância difícil e guarda dentro de si um poder inigualável que um poderoso mestre vai mostrar como controlar. Naruto, Boruto, Ichigo, Natsu, Asta e, mais recentemente, Yuji Itadori, tem tudo isso em comum mas não para por aí. Todos esses protagonistas ainda tem a mesma origem, a mesma força de vontade, os mesmos poderes demoníacos e um mestre muito parecido. A criatividade na indústria do Shonen parece em falta nos últimos 15 anos mas isso não quer dizer que não exista espaço em Jujutsu Kaisen para que ele se diferencie levemente dos demais e, principalmente, não significa que você não deve assistir ao anime.
No leito de morte de seu avô, o jovem Yuji Itadori promete sempre ajudar aqueles que forem mais fracos do que ele. Possuidor de uma resistência física muito acima do normal, Yuji se envolve em uma briga escolar no mesmo momento em que um artefato mágico poderoso libera seu poder e atrai uma série de “maldições” (seres místicos e malignos que são a personificação de sentimentos ruins) para os corredores da instituição. Ajudado por Megumi Fushiguro, um “feiticeiro jujutsu” treinado para destruir os seres maléficos, Yuji se vê obrigado a engolir o artefato mágico que causou o problema e acaba se tornando o hospedeiro da entidade conhecida como Ryoumen Sukuna, o demônio mais poderoso do mundo e reconhecido como “O Rei das Maldições”. Ao contrário do que supostamente deveria acontecer, Itadori não morre ao ingerir o artefato (que é, na realidade, um dos dedos do demônio Sukuna) e por isso é recrutado pela escola de jujutsu local com uma missão bem específica: encontrar e engolir todos os 20 dedos de Sukuna para que o demônio seja eliminado do mundo através do sacrifício de seu hospedeiro. Enquanto duela com Ryoumen pelo controle do próprio corpo, Itadori precisa aprender a manipular a energia amaldiçoada que reside nele e aproveitar todo o tempo que ainda lhe resta antes de ser morto para cumprir a promessa que fez ao seu avô de sempre ajudar aqueles que precisam de ajuda.
Jujutsu Kaisen é uma animação japonesa do estúdio MAPPA (de “orohedoro e God of Highscool) baseada em um mangá homônimo de Gege Akutami publicado desde 2018 na Weekly Shōnen Jump e 2020 pela Panini. A primeira temporada do anime, lançado no Japão e trazido ao Brasil pelo Crunchyroll em transmissão simultânea desde 02 de outubro de 2020, conta com 24 episódios bem aproveitados e de ritmo muito bom. A temporada terminou de maneira bastante empolgante no dia 26 de março de 2021 e uma segunda temporada da série já foi confirmada pelo estúdio, embora a data de lançamento ainda não tenha sido anunciada.
Como citado nos parágrafos acima, há pouca novidade no enredo de Jujutsu Kaisen mas a produção compensa com uma das melhores e mais belas animações da história recente da indústria. Com personagens secundários muito mais interessantes que o protagonista, o anime consegue empolgar demais o espectador nas sequências de ação que, logicamente, abundam nessa primeira temporada. No decorrer dos episódios, conhecemos mais da história dos companheiros de Itadori e o que, a principio, parecia genérico e sem força vai ganhando contornos interessantes o suficiente para que seja relevada a total falta de carisma do protagonista. O anime faz um excelente uso dos personagens secundários (outros alunos da escola de jujutsu e do time de vilões que coloca a ação do desenho em movimento) na medida em que vai interligando-os durante os episódios. Acertadamente, o roteiro movimenta o foco narrativo retirando-o aos poucos do fraco protagonista.
De Yuji Itadori, na verdade, pouco se destaca per se. Como um recém chegado ao mundo do jujutsu, cuja existência é desconhecida de quase toda a população, o protagonista serve de aprendiz mas o anime não segura a trama para ensinar de forma muito mastigada o que é o jujutsu e que são as maldições. Assim, como o personagem principal, o espectador aprende os conceitos ligado à arte da manipulação de energia amaldiçoada e todo o conceito dos artefatos de poder e das maldições conforme a ação vai acontecendo e o trio de protagonistas vai sendo colocado em perigo. Enquanto Megumi Fushiguro e Nobara Kugisaki (companheiro de Yuji) aparecem com histórias claramente mais interessantes que a do personagem principal, o hospedeiro de Ryoumen Sukuna tem apenas vestígios de desenvolvimento quando interage com o demônio que o habita. Ryoumen é apresentado como um antiherói da série e demonstra, durante alguns episódios, parte do seu poder e o inexistente apresso pela humanidade (incluindo, é claro, um desprezo ainda maior por seu hospedeiro). Egoísta ao extremo, o Rei das Maldições negocia o compartilhamento do seu poder com o hospedeiro de sua alma conforme a necessidade aparece em troca de ganhar mais liberdade no corpo de Itadori (parece com uma certa raposa de sete caldas ou com um demônio do submundo trancado em um garotinho sem mana, não é mesmo?). Conforme os episódios se desenvolvem e desembocam em batalhas com cenas de cair o queixo, em nenhum momento o espectador fica empolgado com a atuação de Yuji e isso, infelizmente, tira boa parte do apelo do protagonista. O demônio que o habita, que é introduzido como a grande ameaça à humanidade, não chega a exercer o papel durante nem um segundo dessa primeira temporada e a posição de vilão principal do anime fica a cargo de Suguro Geto, uma espécie de rei do crime na sociedade das maldições. Misterioso e com aparições bastante esparsas na história, a origem e os poderes de Geto são apenas refletidos pelo grande respeito que maldições especiais (as mais poderosas deste universo) tem por ele e as habilidades do grande vilão não são postas à prova durante o primeiro conjunto de episódios.
Ainda sobre os personagens, não poderia deixar de citar o grande nome da serie. Um dos personagens de anime mais hypados da atualidade, Satoru Gojo destaca-se com uma das coisas mais divertidas que o anime pode oferecer aos espectadores. Professor e responsável por Yuji e seus companheiros, Satoru guarda uma aura de trivialidade e pouca preocupação enquanto esconde um poder monstruoso no fundo de um poço de carisma. De design claramente inspirado em Hatake Kakashi (um dos mais populares personagens de Naruto), Gojo aparece como um dos mais indecifráveis enigmas de Jujutsu Kaisen: quando ele dá as caras na tela, você nunca sabe se ele vai dar um pirulito para o vilão ou arrancar a cabeça dele, sempre com um sorriso no rosto. Apesar de já ter destacado a muito mais do que excelente animação do estúdio MAPPA em todos os episódios, é importante dar especial atenção a duas cenas específicas durante essa primeira temporada que envolvem Satoru Gojo e que parecem ter sido o foco do extenso time de ilustradores e animadores do estúdio.
Em linhas gerais, o anime parece muito com um Naruto ou um Black Clover para jovens adultos. Com cenas violentíssimas e conceitos pesados envolvendo toda a ideia por trás da manifestação das maldições, o anime consegue se manter fiel àquilo que apropriou de outras obras recentes e isso, posto que os próprios originais não conseguiram fazer, já consta como uma grande ponto positivo. Apesar de pouquíssimas coisas aparecerem como novidade nos personagens de Jujutsu Kaisen, o anime consegue manter um argumento central honesto e bastante simples (que certamente será traído até o final da história). Com algumas das cenas de batalha mais lindas e bem feitas que já foram feitas na indústria, a série assumiu merecido protagonismo no Crunchyroll e um longa de animação que contará uma história anterior ao anime já está anunciado com data de lançamento para o início de 2022. Provavelmente, só depois desse filme poderemos retornar à Yuji, Megumi, Nobara e, principalmente, Satoru Gojo. Vale a pena esperar!