Remakes são quase sempre relacionados a uma temeridade atroz, especialmente quando a obra repaginada é conhecida por ser tão ímpar, caso da primeira parceria entre Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. O diferencial de Um Drink No Inferno é a total e irrestrita condição de ter dado certo, apesar de todos os fatores externos puxarem as chances da produção acontecer para condições quase nulas. O filme somente deu certo por uma variação de elementos completamente aleatórios que dificilmente se repetiriam se fossem elencados novamente: o humor involuntário, o clima trash, o plot twist dos mais tresloucados, e por incrível que pareça, a sutileza com que tudo é mostrado em tela.
Um dos principais problemas do seriado/reboot é a falta de sutileza e a tentativa de Rodriguez produzir uma origem tendenciosa que flerta com uma teoria da conspiração, transformando um dos irmãos Gecko, um louco psicopata, em um sujeito que ouve vozes do além que o levariam a um bar repleto de sugadores de sangue. A premissa do primeiro filme só funcionou graças à jocosidade e ao humor de não se levar a sério em momento nenhum. Era uma porralouquice pura e simples. Levar esta história por um viés mais sério se mostrou um erro com a primeira continuação e repetindo-se na produção de uma série. A repaginação dos irmãos, fora os já citados defeitos, não é das piores, mas não contém o carisma de Clooney e Tarantino.
A narrativa é entrecortada por flashbacks, um artifício que permite contar a linha narrativa principal e, paralelamente, mostrar o background de alguns dos personagens coadjuvantes. A filmagem dos episódios é realizada por diretores renomados. O próprio Robert Rodriguez dirige alguns (o piloto e os episódios 2, 4, 7). Dentre os outros realizadores há Eduardo Sanchez, de A Bruxa de Blair; Joe Menendez, do longa Ladrón que roba a ladrón; Nick Copus, com participação em The 4400 e Arrow; Fede Alvarez, responsável pelo remake de A Morte do Demônio; além de Dwight H. Little, cujo currículo tem 24 Horas, Prison Break e filmes como Halloween 4 e Marcado Para a Morte. Little foi o único além de Rodriguez que acumulou mais de um episódio nesta temporada, inclusive dirigiu o season finale.
É muito difícil não enxergar a seriedade proposta no roteiro como um exercício de futilidade. A incabível razão espiritual que justifica a loucura de Richard (Zane Holtz, um Michal Shannon genérico) empobrece o personagem que havia sido originalmente feito por Quentin Tarantino. Ele deixa de ser um louco desvairado para ser um assassino à sangue frio que tem a sua volúpia por sangue justificada por uma manipulação sobrenatural. A falta de noção do espécime do filme dos anos 90 dava um charme ao personagem e fazia dele um sujeito imponderável e imprevisível. A característica obviamente não se propaga, dando lugar a um joguete nas mãos de Satanico Pandemonium.
Outro ponto que não funciona plenamente, é a quantidade de teorias da conspiração envolvendo a família Fuller. Os antes caricatos membros do clã dão lugar a pessoas indóceis, que parecem fazer parte de um rascunho dos filmes de Asghar Farhadi, mas obviamente sem a complexa construção de caráter. Os filhos, Kate e Scott, são desconfiados, armados, muito diferentes das crianças inocentes do filme primordial. Kate (Madison Davenport, linda, mesmo com a pouca idade) é a autêntica menina-problema, que não confia em seu pai por não ter certeza de que este tenha feito tudo para salvar a matriarca da família. Scott (Brandon Soo Hoo) é ousado e bom ator, uma vez que consegue esconder a sua pecha de badass dos irmãos Gecko.
Do elenco secundário, feito exclusivo para o seriado, o destaque é de Freddie Gonzalez (Jesse Garcia), o auxiliar de Earl McGraw (Don Johnsonn) que faz questão de voltar para assombrar o ranger e motivá-lo a ir atrás de seus assassinos. O policial tenta incessantemente provar seu valor, mas, assim como a ação dentro da série, o processo para provar que é um topguy é vagaroso.
A personificação do ex-Reverendo Fuller, feita por Robert Patrick, é interessante, a despeito até dos seus poucos dotes artísticos. O ator já havia protagonizado o segundo episódio da cinessérie Um Drink No Inferno 2: Texas Sangrento na mais dispensável obra da franquia. Sua personagem é crível porque concentra em si quase toda a sobriedade válida dentro do roteiro. Seu passado com a falecida esposa é mostrado em algumas vídeo montagens, e a riqueza de detalhes faz justificar bem a sua descrença em Deus – já que o intuito é dar uma face séria à história, é importante que a sua motivação seja crível e verossímil.
As partes “pornográficas” do original são suavizadas na série. O Titty Twister não tem nudez, não tem a aura trash e tampouco Tito e Tarantula. No lugar disso, uma boate comum, aberta enquanto o sol ainda brilha – o que levanta uma curiosidade, visto que os sugadores de sangue conseguem viver sob a luz solar. A abordagem menos humorística garante alguns pontos mais “pés no chão”, mas retirando a diversão, sempre ligada à série original. O maior sacrilégio certamente é com Satanico Pandemonium. Sua atual encarnação, Eiza González, é ótima, mas a beleza é muito diferente da de Salma Hayek (inigualável). Não se equipara nem de longe da gostosura galopante da original.
Excluindo essa questão, ainda falta carisma à moça, mas sobram cenas de ação de conteúdo massavéio, mas nada tão escrachado como visto em Machete ou em outras produções recentes de Rodriguez. No sétimo episódio, Pandemonium é responsável pela violência desmoderada que finalmente ganha pé na briga generalizada do bar. Mas o clima de ação é quebrado por um discurso sabichão do Professor Aiden Tanner (Jake Busey), o Sex Machine desta realidade, que explica que aquele é um solo sagrado, um templo que visa ser a fonte de alimento para os mortos-vivos que ali habitam.
O extermínio dos vampiros, ao final do episódio, é todo pautado na vergonha alheia. O grupo de heróis parece não correr qualquer risco de perecer. Com a aproximação do final, verifica-se a origem de Satanico, muito semelhante ao que foi mostrado em Drink No Inferno 3: A Filha do Carrasco, no qual a moça teria sido vítima de um culto pagão e condenada a vagar, imortal, pela Terra, ganhando, aos poucos, requintes de divindade. Mas sua figura é subalterna dentro deste panteão. Como em uma pirâmide, haveria outros seres acima dela: os chefes das Nove Casas, que precisam ser alimentados e mimados. Seu plano era ser libertada por Richie para, enfim, subir ao topo da cadeia alimentar.
Os detalhes dos sacrifícios são muito curiosos, com rituais sangrentos e violentos, de clima soturno e fotografia suja. Os inícios dos episódios são um pouco lúdicos, mostrando algo não necessariamente relacionado à cronologia normativa. Flashbacks da vida dos Geckos revelam alguns pecados morais de Richie, levando-o a ser o escolhido de Satanico. Outra questão relacionada a escolhidos ocorre com o Otomi – raça guerreira aparentemente resistente aos vampiros da qual Gonzalez descobre fazer parte. Essa prerrogativa parece muito com a de outro personagem de Rodriguez, Wray, protagonista de Planeta Terror e interpretado por Freddy Rodriguez, que seria um guerreiro indestrutível e de enormes poderes, cuja origem jamais foi esclarecida.
Há duas questões primordiais que fazem da série algo mais que um remake mercenário. Uma delas é a morte de Jennifer Fuller (Joanna Going) e a motivação de sua morte. A outra questão é a relação dos irmãos Gecko, primeiro com o pai, depois entre eles. As relações familiares são delicadas, e a tônica, a seriedade escolhida para a produção de Netflix. Tais conflitos internos expõem muitas divergências, posturas que, a prori, podem ser encaradas como traição ao próprio sangue, mas que em sua “diferenciação” revelam a vontade de manter tanto os Fullers quantos o Geckos unidos.
O episódio derradeiro começa como um autêntico filme de assalto, algo que a película original não explorou nem um pouco – esse aspecto é interessante, uma vez que os personagens de maior destaque são criminosos arrombadores de cofres. Infelizmente a dupla de atores é muito inexperiente, não alcançando nem de longe o êxito dos originais, além, é claro, do uso de uma traminha conspiratória demasiadamente pretensiosa. Surpreendentemente, Robert Patrick não faz uma apresentação caricata, que se não chega a rivalizar com a de Harvey Keitel, ao menos garante momentos de forte emoção ao seu Jacob Fuller, assim como faz uma boa dupla com Madison Davenport no momento de seu sacrifício.
Enquanto sobram mortes no clã Fuller, o mesmo não acontece com os Geckos. A saída é covarde nesse quesito e “corajosa” ao não negar o desejo carnal de Seth pela caçula do reverendo, pois no filme original o anti-herói termina tomando uma atitude ligada aos bons costumes. A sensação que se alastra é de que em qualquer momento pode acontecer um reencontro entre os personagens que sobraram, mas a sensação de prato requentado persiste, assim como o triste gosto de que a execução do seriado é desnecessária.