Após o hiato decorrente do fim de 30 Rock, Tina Fey volta como showrunner de um seriado, junto ao seu antigo parceiro Robert Carlock, se valendo do formato de show do Netflix para fugir da dificuldade em abarcar seu humor para grandes plateias, e retornando com o protagonismo feminino, visto também em outras de suas obras. Kimmy Schmidt (Ellie Kemper) é a heroína da vez, a única remanescente de um louco culto apocalíptico que decide, após o fim do mundo não se concretizar, enfrentar a realidade de não ser somente por ser mulher. A literal mensagem vai além do evidente viés feminista; mostra uma mulher com dificuldades em socializar, por ter vivido seus anos dourados em um ambiente subterrâneo, tornando o mito da caverna de Platão algo vívido.
A nova vivência em um ambiente não controlado, como em um culto, faz da mulher um ser claramente ingênuo e crédulo. Todas suas ações e interações são predominantemente infantis e bizarras. A realidade a massacra, fazendo com que a dificuldade de não se encaixar dentro do padrão de normalidade seja ainda mais pesada. Os personagens em seu entorno mostram o quão difícil é seguir os próprios sonhos. Titus Andremodon (Tituss Burgess) o aspirante a cantor e ator, negro, de meia-idade e gay, não consegue o tão sonhado lugar no musical O Rei Leão. Juntos, os dois dividem o apartamento e o sonho de vencer em Nova York.
A saída do buraco após o rompimento com sua antiga “seita” é simbólica em muitos detalhes. Exibe a solidão do ser humano em meio à modernidade, mostra como é difícil ser mulher em uma sociedade nada igualitária e não ignora as carências emocionais de quem é solteiro. O roteiro de Fey e Carlock – co-criador da série – dialoga com questões ligadas aos índios nativos através da personagem Jacqueline Vorhess, vivida por Jane Krakowski – mais uma integrante do antigo programa –, uma rica mulher branca que emprega Kimmy, apesar de todas as suas inabilidades, e que explora uma origem distante do padrão de normalidade.
O roteiro prossegue tão sacana e cheio de referências obscuras quanto em 30 Rock, ainda que nesta haja mais reflexão, especialmente sobre a questão social. No entanto, falta uma personagem que coopte o carisma, como era com Liz Lemon. Falta tempo e exposição para que Kimmy, Jacqueline ou Titus sejam personagens realmente queridos. A demora para engrenar acaba sendo péssimo para o show, que conta com treze episódios apenas.
A empatia entre público e personagens prossegue lenta até os últimos episódios, valendo-se basicamente do carisma de Kimmy, que vai descobrindo a vida de modo tardio. Cada episódio tem o nome da personagem central associado a um verbo, representando suas novas atitudes, em um formato que lembra bastante as alcunhas dos episódios de Friends. Os eventos mostram o choque de realidade de uma pessoa que estava acostumada a um estilo de vida noventista, e que é obrigada a se modernizar e até a se relacionar romanticamente com o sexo oposto, mesmo com toda a inexperiência que lhe é peculiar.
Os temas exploradas pelos roteiros de Tina Fey envolvem a fuga do racismo latente das ruas de Nova York, o medo de permanecer emocionalmente solitário e a busca por sucessos financeiro, usando o paralelo com a história da Gata Borralheira para remeter às transições de Kimmy Schmidt. Do mundo dos anos noventa à década de 2010, com a era da informação gritando para ganhar espaço no cotidiano de Kimmy e de cada uma das sobreviventes mulheres vindas do calabouço.
No entanto, questões legais acometem a vida de Kimmy, como o julgamento do Reverendo Wayne, um homem barbudo e de péssima aparência que enganou as pobres mulheres, e que deveria pagar por seus pecados. Uma vez barbeado, a personagem revela a bem apessoada figura de Jon Hamm, que basicamente só pede para que sua fé seja respeitada sem restrições, dominando inclusive a retórica junto aos jurados. Após deliberar bastante, Kimmy decide enfim encarar seu receio de se ver frente a frente com o homem que tanto mal lhe fez, se assustando com a estupidez exorbitante de todos os que ouvem o enrolador pastor.
Ao adentrar o tribunal, a mulher mostra fibra, mas ainda fica aquém da expectativa de culpar seu algoz, a ponto de decidir ir até o bunker em que foi prisioneiro, junto as outras toupeiras, para investigar algo que pudesse incriminar o reverendo. À medida que as mulheres perdem seu tempo dentro do esconderijo, a porta vai aos poucos se fechando, até trancá-las de volta ao abrigo de onde haviam fugido. As variações de comportamento emulam a Síndrome de Estocolmo e a negação máxima da vida sentimental, por meio de suas antigas companheiras.
Os últimos momentos mostram Kimmy fechando seu ciclo, assim como a de muitas personagens, entre eles Jacqueline, Titus, as outras mulheres toupeiras e, claro, Richard Wayne, que finalmente tem seu castigo merecido. No entanto, os rumos sentimentais da ruiva e do seu colega de quarto são irremediavelmente traçados, com retornos e saídas chocantes, com um enorme gancho para uma segunda temporada. O primeiro ano de Unbreakable Kimmy Schmidt apresenta personagens bastante ricos, mas pouco explorados diante do potencial apresentado, assim como a trajetória, que jamais justifica os melhores momentos dos roteiros de Tina Fey.