O cinema do século XXI é um travesti com um leve complexo de inferioridade. Também é, pode-se dizer, formado por um quadrado ou triângulo de referências básicas e latentes, de vértices com nomes, ou melhor, sobrenomes: Federico Fellini, Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard, e por aí vai. Uma trinca, no caso, que os tempos modernos homenageiam e derivam muitas de suas glórias através das intervenções desse trio responsável, sobretudo, de muito da estrutura na qual essa arte se apoia, para o bem e para o mal. E do ponto de vista francês da miscelânea atual, cada vez menos, mas ainda bem vanguardista, a passagem do tempo parece ser mais explícita na carne, e não é pra menos. Se vem de lá a película mais antiga, faz sentido as rugas serem mais fundas na terra mãe de Georges Méliès. Que responsabilidade pensa ter essa juventude; os bisnetos de Jean Renoir querendo fazer história.
Xavier Dolan, após Eu Matei a Minha Mãe e o tropeção merecido de Tom na Fazenda, conheceu aqui o próprio valor, ainda não imprescindível, e confia nele como só! Tenta amassar uvas para transformá-las em vinhos de qualidade, e os sabores de sua safra inicial de nada (quase não) ofendem os paladares mais exigentes, muito menos os nutridos e sedentos por novos padrões de comportamento, e coragem a tanto, é claro. Feito um Pedro Almodóvar que fala uma língua mais globalizada e bissexual, com a bandeira protetora e bem-vinda de uma nova geração de intenções e mentalidades diversificadas, calcadas na liberdade de criação e longe de ditaduras, imposições monogâmicas ou marcas severas na testa, as cores de Amores Imaginários ilustram a alma de Oscar Wilde em tempos mais libertários que o século XIX (e por vezes de libertinagem como contraste bizarro, à gosto do freguês). De qual outra maneira, senão ambígua e irrevogável, a sugestão de um trio amoroso seria acolhida em uma versão fetichista da França dos dias de hoje, refém dos experimentalismos cheios de vida de Fellini, dos matizes do design de Kubrick, e da poética revolucionária de Godard que tanto estão presentes no DNA atual, nas veias de um cinema que começa na telona e termina no YouTube?
Tudo batido no liquidificador das belas artes, com cuidado para elas continuarem belas, numa narrativa não linear regida pela emoção, instinto de cineasta ou seja lá o que brota da psique de quem brinca de Deus, tudo ainda meio tresloucado, imaturo no exercício, é verdade, de um jovem diretor que se perde no engatinhar das manobras entre o que a linguagem tem a oferecer, e o que a mesma tende a distorcer, ou ainda, a mistificar.
A ética artística de Amores Imaginários, o juízo do filme, grava com ferro a identidade do longa, filmado à flor da pele com uma cinefilia pingando pela vontade de se fazer cinema a sério. Contudo, a mesma ética de Dolan tem um longo caminho a trilhar nos cumes onde pode vir a adotar préstimos, mas essa espécie de comédia romântica trágica prova que o caminho é esse, e prova isso talvez cedo, na melhor das hipóteses, por mais que sua trilha-sonora de balada eletrônica nos forneça um leve “déficit de atenção” quanto a profundidade da iniciativa de principiante. Fantásticas melodias, pontuando elementos perdidos nas várias intenções, essas carentes de uma sintonia maior que ficou na vontade, entre saltos altos, nicotina e confissões de amores não correspondidos. Um filme adolescente para o mesmo público, banhado numa imaturidade convidativa, no que acaba por ser satisfatório, por enquanto na carreira de Dolan, no prazer inenarrável de uma história contada por alguém que tem fé em ser, e que quase consegue expressar ser nesse estágio prematuro que um dia sentirá saudades, um menino prodígio.