Cassandra está cansada de homens tóxicos, todos estamos, até eles estão cansados deles mesmos – como se fosse um comportamento inevitável, algo natural e não construído socialmente. Cassandra não está virando uma Arlequina à toa, mas na verdade, ela está bem distante do estereótipo “bonitinha, mas ordinária”, imortalizado pelo sarcasmo cáustico de Nelson Rodrigues. Ela é uma jovem mulher promissora na vida, mas que traumatizada por circunstâncias passadas, não vai mais aturar abusos de moleques de trinta anos que se acham Homens. Essa “femme fatale” do século XXI está vestida para matar, mas sua sede por vingança a raça masculina torna sua vida vazia, chata, a ponto de precisar continuar na sua “limpeza” para subverter qualquer crise existencial, escondida por detrás de seu rosto de boneca. Cassandra está cansada, mas alguém precisa pagar pelas cicatrizes abertas.
Indiretamente, Bela Vingança desdobra-se numa autocrítica a uma postura de rivalidade que parece ser infinita, mas muito aos poucos, o que pode causar desconforto aos espectadores mais sensíveis, que amam usar “feminista” como ofensa. Cassandra está mais para a noiva de preto, de François Truffaut, que para a Noiva de amarelo de Quentin Tarantino, uma vez que sua revolta é mais contida e menos glamourizada, revestida mais pelo suspense e o drama, que pela ação e caminhões de sangue. Cassandra também quer sangue, mas a partir de certo momento, sua luta para superar com uma violência cármica suas tragédias, toma outra direção: com o filme revirando a fragilidade do seu psicológico, Cassandra passa a avaliar o seu enorme esforço, sua solidão, sua sanidade mental posta à prova. Não tem graça ser Arlequina. Há de se lembrar do clássico Possuída, com a diva Joan Crawford gritando contra o machismo institucional, presa numa cozinha.
Mas isso foi lá em 1931, sabendo-se que, na prática, ainda há muito avanço a se conquistar nos mais diversos aspectos da vida de uma mulher. Em Bela Vingança, a cineasta Emerald Fennell entende Cassandra, a empodera quando precisa e a julga quando merece, e transforma o que poderia ser um filme super polêmico, em um estudo de motivação (e desmotivação) de uma amazona, Carey Mulligan, versus o mundo fora de Themiscera. Maior do que nunca, é Mulligan que incorpora a indignação dos abusados com absoluto charme, numa atuação repleta de camadas e uma riqueza de detalhes impressionante, e que na retaliação de quem cruza o seu caminho, confronta os próprios impulsos para sobreviver à vingança necessária, mais forte do que ela. Quanto ao espectador, o conflito também é grande: temos dó, ou raiva de Cassandra? Devemos torcer por ela, ou repreender seus absurdos? Eis um debate que vale demais.