Intolerância.DOC é um filme denúncia, registrado pela diretora Susanna Lira (de Levante e Damas do Samba), que investiga os crimes de intolerância geral, com o auxílio da DECRADI (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância), que é o regimento único no Brasil especializado neste assunto. Os pouco mais de oitenta filmes se dedicam a tentar fazer o público entender como o ódio acumulado pelo diferente pode resultar em crimes e práticas hediondas.
O primeiro secto estudado é o ambiente das torcidas organizadas, em especial as paulistas Mancha Verde e Gaviões da Fiel. Os torcedores palmeirenses e corintianos tem por tradição a rivalidade e também o confrontamento físico entre as partes. Nesse pedaço, a documentarista entrevista figuras de ambas torcidas e se debruça sobre dois casos famosos de torcedores mortos, primeiro um do Palmeiras e outro do time alvi-negro.
Toda a brutalidade desses confrontos é muito lamentada, tanto pela produção quanto pelos entrevistados, mas é curioso ver o mesmo Jânio Carvalho que era presidente da Mancha lamentar a violência extrema, uma vez que no produto internacional e também documental Real Football Factories o seu discurso era inverso, de confrontamento mesmo. Apesar de o longa querer validar alguns pontos de inclusão tanto do esporte quanto da torcida, é absurda a diferença de discurso entre este produto e o exibido no documentário via ESPN.
Os causos e denúncias melhoram um pouco ao destacar crimes de homo e transfobia, normalmente entrevistando pessoas de São Paulo, mostrando a metrópole não só como o lar de diversas tribos, mas também como um ponto de encontro para diversas ideologias extremas e fundamentalistas. A resistência e a entrega dos nomes dos culpados à polícia serve não só como tentativa de reparação, mas também como um grito libertário de quem apanha e sofre unicamente por ter uma orientação sexual diferente da maioria vigente. Essa barbárie é muito bem registrada pelas lentes de Lira.
De todos os nichos investigados, o mais curioso é o presente no ambiente dos punks, mostrando os carecas do ABC, os grupos nazi-fascistas e claro os anarquistas e marxistas que habitam a cena e o movimento. Há entrevistados dos dois lados, tendo até a inclusão de bandas como Os Inocentes e Cólera entre imagens de arquivo e depoimentos diretos. Para quem não está acostumado ao movimento do punk rock, talvez soe estranho que as mesmas músicas inspirem tanto um discurso progressista quanto um reacionário, mas ambas segmentações de fato existem e são muito mais comuns do que se imagina. O que é realmente contraditório é o fato de um sujeito ouvir as letras que destroem o sistema e ainda assim associar todo esse cenário ao discurso de um militar autoritário como é o caso de Jair Bolsonaro, que durante o filme, é alçado ao papel de figura de governo adorável, por parte de um dos ex-skin heads que cometia crimes raciais e homofóbicos.
A coragem dos cinegrafistas é sui generis, principalmente quando se inserem nos conflitos. A estratégia de embaçar as lentes ao mostrar os entraves é inteligente, pois deixa tudo turvo para que o espectador tire suas próprias conclusões entre um discurso e outro, pendendo é claro para o deboche e desconstrução de tudo que é ligado a extrema direita. Ainda assim, o ritmo de Intolerância.DOC cai vertiginosamente, ao ponto de parecerem dois filmes colados um no outro, além do que o repertório de sua diretora faz com que a expectativa em relação a detalhamento de informação seja menor, e mais econômica. A escolha estética não é necessariamente ruim e o filme está longe de ter uma temática boba, evidentemente, até por servir de voz a muitos excluídos, mas seu potencial de grandiosidade tinha tudo para levá-lo ainda mais longe.