Logo depois de chegar aos limites das estrelas e do sentido em 2001: Uma Odisseia no Espaço, alcançando um grau de excelência e ambição que poucos ou nenhum cineasta dos anos 60 conseguiu alcançar, qual seria agora o próximo passo, a próxima dimensão a ser dominada por Stanley Kubrick? Ora, voltar à Terra, claro, e explorar os confins de algo muito mais complexo que o universo: a natureza humana, tão caótica quanto, e muito mais assombrosa que a mais delirante das supernovas. Parece que, em 1971, Kubrick resolveu parar de olhar para cima, com um telescópio, e descobriu que olhar para Nós, por um microscópio, pode ser ainda mais fascinante – e assustador – que os abismos extraterrestres de um vácuo espacial absoluto. Como ele próprio afirmou, na época: “A questão moral essencial é se um homem pode ou não ser bom, sem ter a opção de ser mau, e se tal criatura continua sendo humana”. Perto da complexidade do homem, o cosmos é ofensivamente óbvio.
Chegamos então a Laranja Mecânica, um dos mais controversos filmes da cultura pop. Aquele que faz sua tia levantar do sofá, resmungando pelo absurdo de um simbolismo erótico e incômodo. Ou melhor: surreal justamente para poder ser implacável, atacando o senso comum ao ser a sua versão espetacularizada sobre o social, e o indivíduo inserido nele – e que, ao mesmo tempo, o rejeita, e interfere no mundo colocando sua natureza acima do bem-estar coletivo. Alex (narrador em primeira pessoa do filme e do livro homônimo de Anthony Burgess) e seus violentos drugues bebem leite para perverter o puro, e arrombam casas para continuar com esse trabalho de perversão, e destruição de tudo – e de todos. Dirigem para se matar, transam como bichos para não escapar do mundano, e ouvem música erudita, vulgo clássica para que o filme acompanhe seu comportamento selvagem, sugerindo assim que a tradição não serve como escudo contra atitudes desumanas. Para o jovem Alex, em seu submundo de Londres, as estrelas não existem, não importam, e o interminável caos dentro de si é o que ele tem para compartilhar.
É a tormenta da civilização, como apontam alguns nas infinitas análises deste clássico de Kubrick, o mais controverso dos filmes do genial mestre. Ambientado num futuro quase que distópico, numa sociedade que tira das pessoas sua liberdade, e dignidade, a resposta a esse sistema vem da rebeldia generalizada de jovens que veem valor apenas no sexo e na (ultra)violência, uma vez que o mundo não tem mais jeito mesmo, e o apocalipse parece já estar atrasado para começar. Mas eles tem muito a perder, sim: sua família, em especial, uma constante que Kubrick resolve mostrar como a possível redenção desses algozes de si mesmo, e de um social atormentado por sua presença transgressora – e destrutiva, dois conceitos totalmente diferentes. Há todo um vocabulário próprio na vida e na sobrevivência desses demônios sem asas, anjos caídos cuja queda nunca sabemos quando aconteceu, mas que trazem consigo uma expressão deles que reforça a ideia de singularidade, e de não-pertencimento a normalidade. Seja através de um dialeto particular, seja por suas roupas brancas manchadas de sangue, e a falta de humanidade nas faces daqueles que rejeitam as possibilidades civilizatórias, e se entregam a barbárie.
É justamente isso que é proposto na prisão de Alex, quando finalmente é encarcerado para ser castrado, ou seja, adestrado. Domesticado, enfim, tal o Hulk de Vingadores: Ultimato. Mas será possível endireitar aquele fatídico pau que já nasceu torto? Vejamos… se a natureza do homem não pode ser desvendada como a origem e a massa das estrelas, lá em cima, o experimento científico de Laranja Mecânica parece ser impossível de funcionar longe das fortes sessões da terapia “Ludovico” às quais Alex é forçado, pelo poder público da Inglaterra, a participar e se submeter a todo tipo de tortura psicológica, a fim de (re)educá-lo. E após o leão virar gatinho, em teoria, soltam o bichinho na selva, onde a realidade cobra o preço, no melhor sentido cármico da situação. Indefeso e chocado como o pecador que foi ao inferno, e voltou pra contar história, Alex experimenta da vingança dos que fez de vítima, já que esse foi o conto de fadas que preparou para si mesmo, enquanto que a pergunta paira no ar: é realmente possível alterar as configurações éticas de um ser humano, e realinhar as coordenadas de sua natureza?
Na total análise desta pergunta, Kubrick vai fundo na estilização da selvageria, sem medo de construir imagens fortes, e torna seu filme uma alegoria profundamente elegante e provocativa do absurdo que muitos cometem a própria figura, e seu futuro. Quando a família do cineasta foi ameaçada de morte pelo correio, Kubrick mandou retirar o filme de exibição na Grã-Bretanha, e ainda em 1971, os críticos não atingiram um consenso sobre os valores morais, e cinematográficos de algo que nasceu para ser exibido e condenado, de imediato, por sua ousadia essencial. Mas o tempo foi bom, e Laranja Mecânica faz parte de um panteão de produções que incitam debates intermináveis em torno de seus temas irresistíveis, ao redor do globo, sendo marcante da substância a forma, abusando de uma encenação esplendorosa e um ambiente futurista, inspirado com exatidão e adoração à revolucionária (e libertina) pop-arte da década de 70 – o mobiliário no leite-bar Korova, por exemplo, é inspirado nas icônicas obras esculturais de Allen Jones, grande nome europeu do movimento. Isso porque, para Kubrick, o tesão está nos limites, e nisso, ele sempre alcançou o êxtase.