Com roteiro do badalado escritor britânico Nick Hornby e direção do canadense Jean-Marc Vallée, Livre conta a história real de superação de Cheryl Strayed, escritora que percorreu os mais de 1600 quilômetros da Pacific Crest Trail, que vai do sul da Califórnia até a fronteira do Canadá.
Após passar por traumas recentes, como a morte da mãe, divórcio decorrido de traições e do uso abusivo de heroína, e sem preparo físico algum, Cheryl decide partir para o enorme desafio físico de percorrer uma difícil e perigosa trilha, entrando em uma jornada de autodescobrimento.
Baseada no livro autobiográfico lançado em 2012, a adaptação de Nick Hornby deixou um roteiro fluido que permitiu o rápido avanço na história. Narrado como um road movie, a proposta do filme é discutir o doloroso processo físico e psicológico que representa o recomeço. A cena inicial, antes do crédito do filme, é bem emblemática neste sentido: depois de arrancar a própria unha do dedão direito em cima de um penhasco, consequência do uso de botas mal escolhidas, Cheryl perde um dos pés do calçado e então decide jogar pelo penhasco o outro pé, gritando “Fuck you!”.
Uma das dificuldades de analisar a obra é evitar cair no senso comum e chamar Livre de Na Natureza Selvagem feminino (leia a nossa crítica do filme, e a resenha feita para o livro de Jon Krakauer). Apesar de usar a mesma estrutura narrativa de flashbacks no meio de uma narrativa principal, e de ter uma protagonista sozinha em meio a natureza, são duas propostas completamente diferentes: Cheryl Strayed não nega o seu papel na sociedade como Christopher McCandeless o faz, e muito menos prega o desapego aos bens materiais ou nega os valores da sociedade em si; ela está ali, longe da civilização, para repensar a sua vida e os seus valores. Inclusive, na parte em que é entrevistada contra a sua própria vontade, Cheryl repete várias vezes ao repórter que não é uma andarilha sem destino, e que tem um objetivo muito claro: completar a difícil trilha; em outra parte, ela cria expectativa para as botas novas que irá receber, já que os seus pés estão quase em carne viva em razão da cena inicial. O roteiro de Nick Hornby tenta se distanciar ao máximo da inevitável comparação com o filme de Sean Penn, e consegue com sucesso.
A tradução do título do filme para o português é curiosa. Livre é selvagem e também serviria como título, pois não há ordem ou papel social a ser representado quando se é “selvagem”. Porém, “Livre” aparenta ser uma escolha mais acertada, já que a protagonista precisava se livrar das amarras que a prendiam para começar uma nova vida, inclusive em outra cidade.
A atuação de Reese Whitespoon é incrível. Ela consegue encarnar a Cheryl Strayed, a amorosa filha abalada após a morte da mãe, nas difíceis cenas em que se droga e faz sexo violento, até ter a sua redenção através do trabalho físico de percorrer a extensa trilha e ter que lidar com os perigos e contratempos do caminho. Os outros atores têm boas aparições, mas nenhuma que importe tanto quanto a da mãe de Strayed, vivida pela sempre ótima Laura Dern, ou a do ex-marido da protagonista, interpretado pelo bom Thomas Sadoski (o Don Keefer de The Newsroom).
O canadense Jean-Marc Vallée repete a boa direção depois do ótimo Clube de Compras Dallas, e neste ela se revela novamente na direção de atores, com a atuação solitária de Reese na trilha tendo que lidar com a solidão e os seus demônios internos. No entanto, uma crítica que pode ser feita refere-se ao final um pouco abrupto do filme. Apesar de indicar no roteiro o ponto onde a trilha terminaria, faltou ao diretor trabalhar melhor a informação para dar mais sentido à conclusão da história.
A fotografia naturalista desempenha o que se espera de um bom fotógrafo como o canadense Yves Bélanger, que também fotografou Clube de Compras Dallas, embora as bonitas imagens da natureza pudessem ter sido um pouco mais impactantes.
A edição foi um dos pontos altos do filme. O diretor, que também editou o filme junto ao canadense Martin Pensa, outro colaborador de Clube de Compras Dallas, criou cortes rápidos e interessantes quando liga os flashbacks de lembranças de Cheryl com a realidade do presente. Neste sentido, pode ser tecida uma comparação com os cortes ágeis às cenas dos personagens usando drogas em Réquiem Para um Sonho, de Darren Aronofsky.
Livre vale a pena ser visto não só por estar concorrendo ao Oscar, mas sim por ser uma linda história da mais simples humanidade, que vai do amor à perda, da entrega ao caminho fácil à superação; e, finalmente, de mudança e renascimento.
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Texto de autoria de Pablo Grilo.
Gostei muito do filme. Fizeram um ótimo uso do fluxo de consciência (nas cenas em que ela rememora os momentos da vida dela, como se estivéssemos vivendo estes instantes também), e a atuação da Whisterspoon está perfeita.