O mundo de Brandon Sullivan (Michael Fassbender, espetacular) é vazio. Sem cores e esmaecido. Ele acorda, pega o metrô, trabalha, volta para casa e vai a bares à noite. Cada uma dessas ações, entretanto, é pontuada inteiramente por um fator: sexo. O personagem – protagonista de Shame, novo filme do cineasta Steve McQueen – possui um distúrbio que os psicanalistas atualmente classificam como hipersexualidade ou transtorno hipersexual.
Por conta disso, Brandon é um sujeito, já a beira dos 40 anos, que se entope com pornografia, sexo virtual, relações com prostitutas e casos de apenas uma noite. Partindo de uma análise superficial, poderíamos questionar qual o problema em se gostar tanto de sexo.
E Esse é um dos pontos fundamentais abordados pelo filme.
Brandon não gosta de sexo. É obsecado por ele.
Torna-se tão cego por isso que não consegue perceber que o mundo ao seu redor simplesmente não existe. Trabalha de forma burocrática, é incapaz de se relacionar ou se apaixonar por qualquer pessoa ou coisa. Brandon, na verdade, está doente.
Ao longo do filme, é possível notar vários sinais do quão isolado e imerso em seu vício ele se tornou. O computador que usa no trabalho está repleto de pornografia – o que lhe rende uma advertência de seu chefe. Costuma se masturbar no próprio banheiro do local onde trabalha e também em casa. Passa boa parte do dia tendo encontros com prostitutas e se masturbando diante de bate-papos na internet. Isso sem falar na quantidade colossal de revistas pornô que guarda nos armários de casa.
Antes de tudo, nada de puritanismos. Qualquer uma das atividades descritas acima é perfeitamente aceitável e normal. O problema é quando as mesmas se tornam uma obsessão e único ponto focal de uma vida inteira.
E é justamente o que acontece com Brandon, que parece estar alheio – ou mesmo se está consciente parece não se importar – com os problemas que isso lhe causa. No entanto, dois fatos primordiais farão com que ele abra os olhos para essa realidade.
O primeiro é a chegada de sua irmã, Sissy (Carrey Mulligan, ótima), que passará a morar com ele. Mesmo perdida e emocionalmente instável, ela consegue ter uma maior ligação com se lado emocional. E tenta transferir essa conexão para o irmão, que a rejeita de forma agressiva. Ao negar Sissy, Brando na verdade nega suas emoções. A barreira emocional criada por ele por meio da devoção ao seu vício em sexo não permite qualquer tipo de sentimento.
Num dado momento, ele assiste a irmã – que é cantora – se apresentar num bar sofisticado em Manhattan. Ela canta uma versão lenta e melancólica de “New Yor, New York”. As aspirações da letra, as figuras evocadas por seus versos e a interpretação emocional fazem com que uma lágrima caia de seu rosto. Raro momento de concessão às emoções.
Posteriormente, quando a própria irmã cede a uma relação de uma noite com uma pessoa próxima ao irmão, percebemos a tensão sexual que existe entre Brandon e Sissy.
O outro fator fundamental da trama está no quase relacionamento que ele mantém com a colega de trabalho Marianne (Nicole Beharie, em boa interpretação). A aproximação dela será o grande ponto de inflexão do filme.
Durante uma cena num restaurante – que até provoca alguns risos involuntários – vemos que Brandon é absolutamente avesso a uma relação mais séria. Justamente o contrário do que Marianne deseja.
Surge um impasse.
Mesmo assim, ambos sentem-se atraídos um pelo outro. Fatalmente partem para consumar o ato. E é justamente o que acontece nesse trecho que vai jogar a trama numa direção mais aguda. O predador sexual – diante de uma mulher que demonstra ter a capacidade de expressar sentimentos verdadeiros por ele – falha em seu próprio campo de batalha.
O que se segue é uma sessão de catarse do protagonista em busca de liberação sexual sem limites. Isso o leva a ser espancado por um namorado ofendido, passar parte da madrugada numa boate gay e terminar a madrugada num ménage com desconhecidas. Tudo isso quase ao preço da perda de uma pessoa especial.
O final do personagem é aberto. Ele terá aprendido sua lição? Não saberemos. Para ilustrar essa incerteza, o diretor usa no fim uma situação explorada logo no início do filme, no metrô.
Steve McQueen é primoroso ao retratar o estado de vazio emocional e existencial experimentado pelo personagem. Sua casa, seu trabalho. Todos os ambientes, enfim, são retratados com uma fotografia fria e inóspita. Não há espaço para emoções no mundo de Brandon.
Nas cenas de casa, há uma predominância de tons brancos e cinzas. O trabalho e os bares frequentados pelo personagem são dominados por tonalidades de cinza e também por sombras. O único momento no qual outra cor – o amarelo quente – prevalece é justamente durante o ménage, quando o protagonista está em seu auge, colocando suas frustrações para fora.
Quanto ao tempo, o roteiro é direto. Não há idas e vindas na história.
As tomadas são longas. O diretor se demora em várias delas, registrando com cuidado as expressões faciais e corporais dos atores. Há uma exploração consciente da horizontalidade da tela.
Aliás, para retratar o distúrbio psicológico do protagonista, em vários momentos McQueen coloca a figura de Fassbender exatamente no canto da tela, o que transmite uma sensação de falta de adequação e isolamento em relação ao mundo que o cerca.
Num dado momento de uma das viagens do metrô, entretanto, é possível ver que o diretor se mostra otimista com relação ao futuro de Brandon e também com um possível controle de sua compulsão.
Atrás dele, numa das paredes do trem, há uma quadro com a frase “Improving. Don’t stop”. Traduzindo: “Melhorando. Não pare”. Será?
Jamais saberemos.
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Texto de autoria de Carlos Brito.
Boa indicação esse filme, nunca pegue uma referência que ele existisse. Passou desapercebido.
Ele é Italiano? Vou baixar aqui na locadora do senhor torrento para ver depois.
Não.
A produção é inglesa, mas inteiramente rodada em Nova York.
otima critica mesmo, também foi o Carlos Brito esse cara manja muito, vou colocar aqui na lista pra assistir.
excluíram meu comentário aqui, wtf? porque isso agora.
Triste saber que a maioria dos cinemas se recusou a exibir este filme. Vou baixar e volto pra dar minha opinião. Crítica muito boa, como de costume, Carlos.
Excelente crítica para um excelente filme.
Depois de ver esse filme, Shame, e ver Hunger do mesmo diretor Steve McQueen e com o mesmo ator Michael Fassbender passei a prestar mais atenção nessa dupla e buscar todas os seus outros trabalhos. O Fassbender é um ator sublime, espetacular.
Muito bom filme, e ótima crítica, realmente Fassember e Mcqueem tem uma sintonia que eleva em muito a qualidade do filme, digamos na gíria do futebol que eles estão entrosados.
Outra coisa que me chamou a atenção foi a atuação da Carrey Mulligan, gostei muito da parte que ela fala com o irmão ao telefone, mesmo ela não estando fisicamente na cena nos mostra o efeito que ela tem sobre o ele.
Ótimo filme.