“Estava pensando no personagem de John Wayne no filme Rastros de Ódio… Ele não parece falar muito, exceto “Vai chegar o dia…” (de onde Buddy Holly se inspirou para sua música). Ele não pertence a lugar nenhum, já que lutou numa guerra que apostava tudo e mesmo assim perdeu. Ele vaga, ganha algum tipo de amor no caminho, mas na busca pela garotinha ele mata mais búfalos que o necessário só para tirar comida dos índios comanche – mesmo tendo perdido, a mágoa ainda está presente “com toda a certeza do mundo”, como ele mesmo diz.”
– Trecho traduzido do inglês sobre Taxi Driver, do livro ‘Scorsese on Scorsese’, pág. 66.
Eis alguém que pode ser considerado, em 2018, como o Melhor diretor de Hollywood ainda em atividade. Um fato que se fomenta não apenas por tudo o que Martin Scorsese já fez, mas pelo o que continua fazendo no alto dos seus setenta e poucos anos, muitos desses dedicados a sua mais longínqua esposa. Casado cinco vezes, é com o Cinema o matrimônio vitalício de sua vida conturbada e profundamente nova yorkina. Cria (da gema) da cidade americana mais famosa do mundo, os filmes de Martin se popularizaram justamente por contar com seu principal personagem a Big Apple de Woody Allen, outro eterno sinônimo ambulante da Grande Maçã; contudo, enquanto Allen vê o lado mais romântico e turístico da megalópole, Scorsese persegue seus personagens e delineia suas situações limítrofe por becos escuros e o lado muito vezes não-glamoroso e bem organizado da cidade dos taxis amarelos e das luzes sem fim, nas calçadas eternas dos milhares de rostos infinitos, cada um com uma história urbana mais ou menos inspiradora que a outra.
”Nunca me dei bem com Hollywood”, afirmou em entrevista à revista ÉPOCA.
De uma família de classe média de origem italiana, aos 22 anos Martin Scorsese se graduou em Cinema pela Universidade de Nova York ao invés de virar padre, com boa parte de sua vida, e obra, muito bem assentadas e completas em dois livros cânones para os fãs do cineasta, ou aos fãs de Cinema como um todo: O introspectivo ‘Scorsese on Scorsese’, decupando por páginas a fio a sua vida e os seus impulsos mais primordiais, da tradicional editora Faber and Faber, e a obra mais referente a seus trabalhos e a sua forma de pensar, o ótimo ‘Conversas com Scorsese’, da Cosac Naify. Ambos se completam perfeitamente numa leitura estendida sobre a mente e o coração do eterno garoto de Little Italy (bairro pobre e violentíssimo da Nova York dos anos 40), sabendo-se também que nenhum comentário, nenhuma entrevista, é comparável a análise crítica de cada um, feita ao se viver os seus grandes filmes na melhor tela possível.
Para ele, a violência que cresceu “assistindo” nas ruas sempre foi produto do meio, por vezes começo, meio e fim, mapeando e customizando a vitória de uns, ao custo da decadência de outros. O tempo fez Scorsese refinar seu ponto de vista tipicamente urbano, e selvagemente capitalista de sempre, tornando filmes como O Lobo de Wall Street, Cassino e o magistral e incomparável Os Bons Companheiros estatutos filmados de uma visão de mundo tão intensa nos seus fatores a fim de sempre atingir um denominador em comum. O seu trabalho é sobre a humanidade em geral, sem ela talvez nenhuma história mereça ser contada para nós, seres-humanos, e não há humanidade sem violência, sem impacto, sem fagulha ou causa e consequência prevista por milênios de evolução. Scorsese embute essa perspectiva dura e cruel, mas verdadeira, na história de alguém que só gostaria de uma boa noite com um bom sexo (Depois das Horas), ou na trajetória de uma mulher atormentada por seu marido que resolve se libertar da violência física e mental inferida sobre ela (Alice Não Mora Mais Aqui).
Até mesmo na violência hiper-romantizada e personificada num inspetor contra um garoto órfão, numa estação de trem em Paris, Scorsese nos mostra que não há caminho sem agruras, sem uma curva, e que os impactos provenientes dessas esquinas que nos atrapalham são ou podem ser naturais e igualmente tão enriquecedores para um registro histórico como a própria história sacrificial de Cristo nos provou, dois mil e dezoito anos depois, sendo um marco temporal praticamente sem precedentes na história do homem; algo totalmente conectivo as raízes religiosas e ao ponto de vista duro sobre a vida de Scorsese, mas ascendendo uma questão absolutamente presente, de um jeito ou de outro, na filmografia do mestre: Até que ponto a humanidade abraça a violência inevitável a ela, ainda sendo humana? Scorsese nunca discute razão ou emoção na sua longa filmografia, justiça, moralidade ou a falta delas, mas aonde se aloja o limite entre o que nos faz humanos e o que nos corrompe – e quando consegue explorar o que nos corrompe, invade esse território sem dó, com o resultado quase sempre memorável numa carreira repleta de longas, curtas e documentários apaixonados que firmam a própria história moderna dos Estados Unidos, e a revitalização da cultura norte-americana logo após a segunda grande guerra mundial.
Em meio a parceria já simbólica de dois grandes astros do cinema, Robert de Niro e Leo DiCaprio, nota-se as histórias que ambos representam com grandiosidade, ganhando a confiança de quem os dirige, de pleno sucesso, obsessão, fúria existencial e ansiedade que lideram seus arquétipos masculinos a galgar os mais altos e profundos aspectos de existências ora repletas de glória, ora de perdição, mas sempre entusiasmantes. É o fenômeno da digressão exponencial de personagens em narrativas que os mantém em foco, e imortalizado em Touro Indomável, O Aviador, O Rei da Comédia e outros que dão a cara a tapa às ironias de uma vida que se prova por um tempo generosa, e não constantemente com sua face mais impiedosa e sádica posta a tapa, tal como no clássico Taxi Driver, no premiado Os Infiltrados, no frenético clipe de Michael Jackson ‘Bad’, ou no seu ótimo debute Caminhos Perigosos (esse último sendo um retrato hiper fiel ao mundo conturbado que o diretor vivia antes de gritar “Ação!”, pela primeira vez).
Exemplos magníficos de uma carreira multimascarada por contos urbanos diferentes, por maneiras distintas sobretudo de se conjurá-los sob a arte que Scorsese ainda domina como ninguém, mas que dialogam afinal sob o manto de um mesmo tema. Esses fatores que formam o DNA de uma humanidade, hoje e sempre, são e foram o norte de numerosos artistas que se provaram inesquecíveis, ao longo das gerações que sempre colocam em cheque a validade de suas missões – e falham. Diante dos relatos ditos e filmados de Martin Scorsese, não resta dúvida de que o diretor de Silêncio (Representante atual contra o lamento de ‘não se fazer mais filmes como antigamente.’), New York, New York e Cabo do Medo, um dos grandes suspenses da década de 90, pode ser considerado uma lenda viva por sua capacidade criativa diante de um universo dramatizado pelas mesmas forças que moldam o nosso, tão verossímil na versão de um diretor que sabe muito bem haver mais do que sangue bombeando no misterioso coração de um homem e de uma mulher – meros produtos de seus meios, como somos todos nós.
Vide, enfim, que não cabe a um artista discutir as vicissitudes da realidade friamente imposta ao indivíduo refém das condições da vida (ou sobre quais valores frívolos o mesmo acha certo vestir e moldar as suas escolhas), mas recriá-las em forma de visão, sendo esta, afinal de contas, um compêndio antagônico de essenciais consequências do que move o lado de cá das coisas belas, e sujas. Fã inclusive do brasileiro Glauber Rocha e cinéfilo inveterado, convenhamos que Martin Scorsese alcançou essa transmutação ideológica há muito, e conserva-a com a tranquilidade de quem já não deve provar mais nada, dando-se ao luxo de realizar seu filme mais dessemelhante, Hugo, no ano de 2011, feito, segundo declaração do próprio, para que seus filhos ainda pequenos pudessem ver ao menos uma de suas dezenas de inovações. Nisso, o nova yorkino baixinho (que não sabia de jeito algum dirigir atores no começo) já se mostrou ciente do que simboliza ao mundo.
Filmografia (Diretor)
(1966) New York City… Melting Point
(1967) Quem Bate à Minha Porta?
(1970) Street Scenes
(1972) Sexy e Marginal
(1973) Caminhos Perigosos
(1974) Italianamerican
(1974) Alice Não Mora Mais Aqui
(1976) Táxi Driver
(1977) New York, New York
(1978) O Último Concerto de Rock
(1978) American Boy: A Profile of: Steven Prince
(1980) Touro Indomável
(1982) O Rei da Comédia
(1985) Depois de Horas
(1986) A Cor do Dinheiro
(1988) A Última Tentação de Cristo
(1989) Contos de Nova York (segmento Life Lessons)
(1990) Os Bons Companheiros
(1991) Cabo do Medo
(1991) The King of Ads (segmento Armani, Eau pour Homme commercial)
(1993) A Época da Inocência
(1995) Cassino
(1997) Kundun
(1999) Minha Viagem à Itália
(1999) Vivendo no Limite
(2002) Gangues de Nova York
(2003) The Blues (episódio Feel Like Going Home)
(2004) O Aviador
(2006) Os Infiltrados
(2008) Shine a Light
(2010) Ilha do Medo
(2010) A Letter to Elia
(2010) Public Speaking
(2011) George Harrison: Living in the Material World
(2011) A Invenção de Hugo Cabret
(2013) O Lobo de Wall Street
(2014) The 50 Year Argument
(2016) Silêncio
(2019) Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese
(2019) O Irlandês
(2019) Conversando Sobre O Irlandês
Artigos