Livros baseados em franquias de games já são um nicho de mercado mais do que consolidado, inclusive no Brasil. São simples novelizações das histórias dos jogos, que potencialmente atraem um público novo, mas pouco oferecem aos jogadores. Uma ótima exceção é Bioshock: Rapture, escrito por John Shirley. O romance, publicado pela editora Novo Século, é uma prequel bastante reveladora para os games Bioshock e Bioshock 2.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, o cenário global não é dos mais animadores. A tensão entre as duas superpotências deixa o planeta temendo uma total aniquilação nuclear. Além disso, a necessidade de reconstrução econômica acarreta em mais impostos e maior intervenção do Estado nas instituições privadas. Diante disso tudo, o magnata Andrew Ryan decide buscar uma alternativa. Um empreendimento faraônico destinado a criar um lugar onde cada um terá direito àquilo que consquista com seu suor. Onde o progresso científico não será limitado por questões morais ou religiosas. Um lugar “sem deuses nem reis, somente homens”. Uma utópica cidade construída no fundo do mar, apropriadamente chamada de Rapture (arrebatamento, em inglês).
Shirley é um experiente e premiado autor multimídia, que já escreveu livros, séries de TV e filmes. Com muita habilidade, ele constrói uma narrativa cativante e coesa, mesmo com inúmeros saltos temporais. O livro cobre um período de 14 anos, passando pela idealização, construção, e o progressivo declínio de Rapture. Alguns personagens, no game, são figuras um tanto aleatórias que cruzam o caminho do jogador, ou têm trechos de suas histórias vislumbrados através de gravações. Aqui, eles têm suas origens, motivações e papéis na história da cidade muito mais bem detalhadas e exploradas. Exemplos, além do próprio Ryan: Dra Tenembaum, Dr Suchong, Dr Steinman, Fontaine, Atlas e vários outros. Vale também mencionar Bill McDonagh, que pode ser apontado como o protagonista, já que nossa visão da trama é quase sempre a dele.
Mas quem protagoniza de fato a história é a própria cidade de Rapture, uma utopia que fatalmente se torna uma distopia, à medida que a população descobre que o sonho vendido por Ryan não é tão belo assim. O discurso do magnata, de que trabalho duro conquista tudo, carrega a hipocrisia e ingenuidade típica dos bem-sucedidos. Estes não percebem que o sistema que funcionou pra eles não fucionará para todos, que a existência dos “derrotados” e explorados é algo intrínseco ao capitalismo. Principalmente nos moldes propostos por Ryan, de interferência e assistencialismo zero (ele abomina qualquer coisa que se aproxime de ideais comunistas). Logo surgem desempregados, favelas, inquietações sociais que abrem espaço para movimentos e pretensos líderes.
Outro aspecto abordado pela trama são os perigos da ciência sem moral e controle. Pois só piorando a situação, surgem os plasmids, capazes não apenas de aumentar o potencial físico e mental das pessoas, como também de fornecer super-poderes tais como telecinese, eletricidade, fogo, etc. Algo tão perigoso certamente deveria ser controlado, talvez até proibido, mas os interesses econômicos falam mais alto e Rapture se transforma num verdadeiro inferno. Drogas extremamente viciantes e com efeitos colaterais que envolvem deformações físicas e mentais, os plasmids criam um marginalizado grupo de viciados insanos e superpoderosos, os splicers.
Como ponto fraco, é preciso salientar que a obra traz uma história incompleta, já que ela acaba pouco antes do início do primeiro jogo. Ficam muitas pontas soltas, personagens que têm destaque e de repente somem, além da grande história central, a da cidade, não ter conclusão. Ironicamente, seriam necessárias novelizações dos dois primeiros games da franquia. Ou analisando mercadologicamente, a decisão foi perfeita, pois o leitor sem dúvida alguma fica tentado a ir atrás dos jogos. De qualquer forma, Bioshock: Rapture é uma obra riquíssima em conteúdo. Uma instigante trama que mistura estilos (policial noir, ficção científica de raiz, steampunk) e discute conceitos filosóficos, morais, sociais, político-econômicos. Recomendação máxima e absoluta.
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Texto de autoria de Jackson Good.