O maior problema com os periódicos reboots e reformulações dos heróis dos quadrinhos é a indefinição provocada na cronologia. Histórias passadas são invalidadas, retro-modificadas ou simplesmente empurradas com a barriga, de acordo com a conveniência dos roteiristas e editores. Os Novos 52 da DC Comics foram o ápice disso tudo. No meio dessa bagunça, que confunde os leitores inexperientes e irrita os de longa data, a solução é simples: não esquentar a cabeça. Curtir cada aventura pelo seu valor intrínseco deve ser a postura diante de materiais antigos, como o encadernado Batman: Xamã, lançado recentemente pela Panini.
O arco foi publicado originalmente nos cinco primeiros números da revista mensal Batman: Legends of the Dark Knight, entre 1989 e 1990. Este título tinha a proposta de mostrar histórias do passado do Homem-Morcego, nebuloso após a reformulação provocada por Crise nas Infinitas Terras – situação muito parecida com o momento atual do herói. O primeiro conto veio com a pouco modesta intenção de “complementar” o clássico Batman Ano Um, lançado anos antes. O trabalho ficou por conta de Dennis O’Neil, célebre escritor responsável por dezenas de histórias do Batman e da DC em geral, acompanhado por Edward Hannigan, que faz os desenhos, e John Beaty, a arte-final.
A trama inicia-se no período de treinamento de Bruce Wayne ao redor do mundo. Durante a caçada a um assassino no Alasca, ele é salvo da morte no gelo por uma tribo local. O xamã executa um ritual de cura cuja essência é narrar a fábula/lenda de como o Morcego ganhou suas asas. De volta a Gotham, a história cruza a de Ano Um, inclusive reproduzindo alguns quadros desta, e depois acontece um salto temporal, mostrando um Batman já com certa experiência, forçado a encarar um caso que sugere algo sobrenatural, e com raízes em seu passado.
Batman: Xamã é composto de altos e baixos, apresentando ideias que são, curiosamente, boas e ruins ao mesmo tempo. Adicionar uma camada de misticismo à formação da figura do Batman é a maior delas. Faz todo o sentido, considerando todo o conceito de lenda urbana e teatralidade sempre marcantes no herói. Porém, incomoda a coincidência gigantesca que é a figura do Morcego praticamente perseguir Bruce Wayne onde quer que ele esteja. Apelar pra conveniências do tipo é sempre um recurso que enfraquece qualquer narrativa. E sugerir algo como “destino” ou forças efetivamente sobrenaturais na criação do Batman, um personagem marcadamente humano e urbano, não combina nem um pouco.
Por sinal, O’Neil trabalha justamente a humanidade do herói muito bem. A figura do detetive infalível ficou tão marcada nas últimas décadas que é quase uma agradável surpresa se deparar com um Bruce Wayne iniciante e ainda com dúvidas sobre sua missão. Muito melhor do que a versão de sempre, de um garotinho de oito anos fazendo um juramento inabalável. Aqui, ele chega ao ponto de cogitar uma aposentadoria simplesmente por sofrer uma derrota, o que revela insegurança mas ao mesmo tempo uma arrogância bem juvenil.
Seguindo entre erros e acertos, a conclusão deixa a desejar. Foram apresentadas várias pontas, que no final não se conectam. A solução foi transformar o que parecia ser uma única história em duas. E, de novo, uma enorme coincidência as duas envolverem rituais e figuras místicas, permitindo que o Batman use o aprendizado de uma para resolver a outra. Em relação à arte, parece brincadeira, mas irregularidade também é a palavra. Hannigan segue algo que se pode chamar de “estilo anos 80”, até parecendo emular o que David Mazzuchelli fez em Ano Um – o uso de cores chapadas só reforça essa impressão. Simplicidade em anatomia e composição dos quadros, mas com atenção especial para os detalhes dos cenários, especialmente aqueles retratando a degradação urbana.
Em resumo, Batman: Xamã não é de forma alguma uma leitura indispensável, mas vale a pena para fãs do Morcego ou para quem simplesmente quer conferir ou relembrar como eram os quadrinhos naquela época, uma das mais celebradas até hoje. Com um acabamento bom sem ser luxuoso (nada de capa dura, graças a deus) e 140 páginas, o encadernado custa razoáveis R$ 14,90.
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Texto de autoria de Jackson Good.
Excelente resenha. Também fiquei meio dividido, inclusive concordo plenamente com as ideias que são “boas e ruins”. Eu achei o primeiro capítulo meio fraco, apesar das alusões a Ano Um terem sido bacanas, enfim, uma introdução mediana mas promissora. Os dois capítulos que seguem eu achei excelentes, surpreendentemente a estória se desenvolve muito bem nesse meio, ficando bastante interessante. Os dois últimos capítulos também não são ruins, até conseguem manter o nível, mas a conclusão é realmente decepcionante pelo nível do que estava sendo trabalhado. A arte eu considero como ponto positivo, gosto muitíssimo desse “estilo anos 80”. Concluindo, acho a HQ bem sólida no desenvolvimento, mas ela peca na hora de resolver tudo. Vale pela jornada eu acho.