Hellboy, primeiramente, é um personagem único, diferente de muitas figuras mais famosas dos quadrinhos. Uma criatura que poderia ser uma coisa, mas pela sua educação, decide moralmente ser outra num mundo em que, dizem, aloja os demônios fazendo o inferno lá embaixo estar vazio, e frio. Disso, ele ri, e ri sem parar, uma vez acostumado a enfrentar as faces mais terríveis do medo e também como se soubesse que o “lado do mal”, sem apelar para quaisquer maniqueísmos, costuma ser mais fraco no final das contas que a luz que desdenha. Hellboy então é alguém que escolheu não ter chifres, e renega sem dúvida os seus irmãos e compadres do submundo em prol de salvar, repetidas vezes, e com muito sarcasmo, uma dimensão que o conjurou e o acolheu, e assim, o fez ser justo e virtuoso por mais que a sua aparência satânica, vermelha e forte transmita em sua iconografia o exato oposto disso.
Mike Mignola é um gênio semi-desconhecido da nona-arte, o que é absolutamente vergonhoso devido seu alto potencial criativo e seus traços tão expressivos que, muitas vezes, dispensam balões de fala para completar verbalmente as imagens complexas e instigantes que o quadrinista faz questão de construir, mergulhando na sombra e no abstrato a seu bel prazer para nos encantar nas batalhas, e nos seres que dá vida nas páginas. Com seu estilo inconfundível nos quadrinhos, fez de Hellboy a criação mais popular da editora Dark Horse, uma das maiores editoras independentes que se contrapõe desde 1986 às gigantes Marvel e DC (apesar de Hellboy ser a cara da segunda), elaborando com o roteirista John Byrne uma realidade povoada por entidades tão bizarras e eventos tão inexplicáveis que só Guillermo Del Toro seria capaz de transpor o personagem ao cinema – algo que o estúdio Lionsgate duvidou, e em 2019 pagou o preço por não deixar Del Toro trabalhar.
Agora, nesta coletânea Sementes da Destruição publicada no Brasil pela Mythos Editora em um primoroso trabalho gráfico e contando até com um rico caderno de esboços, reúnem-se todas as primeiras histórias de Hellboy, aquele que despreza suas origens do mal desde o começo, em uma perfeita e caprichada ordem cronológica para colecionador nenhum botar defeito. Em cinco histórias ao longo de mais de 300 páginas a destilar o potencial de Mignola e Byrne em criar histórias de terror mais divertidas e com mais atmosfera do que muitos filmes passáveis, hoje em dia, eis aqui um encadernado que visa nos encantar, do início ao fim, com as aventuras de um ser chamado ao nosso plano material para o mal, mas criado de maneira oposta a seu propósito inicial: ajudar os nazistas a vencer a segunda guerra, e dominar a Terra com a ajuda das trevas, forjando um novo abismo para aprisionar boa parte da humanidade rebelde.
Só que não. Hoje, Hellboy e seus bizarros parceiros fazem atuar (sem garantia de sucesso, mas com boas risadas diante do perigo) no imprevisível e místico mundo dos fenômenos sobrenaturais, em um escritório que se propõe a investigar tais fenômenos em nível universal, e proteger a dimensão dos seres humanos de bestas do inferno, monstros errantes e antigas entidades que nunca querem descansar, e nos deixar em paz. Na luta contra as várias formas de horror em seu caminho (e com muita influência dos velhos mestres da literatura do gênero, como Edgar Allan Poe, o grande poeta William Blake e Lovecraft, para citar as referências mais explícitas), Hellboy faz o sarcasmo e o sadismo de Deadpool ser para principiantes, chegando a zombar de demônios poderosos (“Pô, assim você me mata de tédio!”) e nunca dar o devido crédito a todo azar de atrocidades que ao menino do inferno nunca são verdadeiramente horripilantes – e sim engraçadas, já que o fogo não teme a si próprio.
Na luta entre iguais, a diferença é que um optou pela justiça, e os outros, pela soberba e tirania que se expressam em rituais macabros, e todo o resto de elementos trevosos que fazem parte substancial destas histórias irresistíveis, e cheias de uma mitologia tão própria e elogiada. Em Sementes da Destruição, talvez o melhor desses contos neste primeiro volume seja o “Quase um Deus”, acerca da cruel ganância extremista de um homem louco, junto da breve e ótima “O Caixão Acorrentado”, sobre um pacto demoníaco de uma mulher e o triste preço a ser pago por ela, a quem a morte é negada numa eternidade de servidão, no oculto. Talvez seja justamente nessa na qual o surrealismo e a loucura pagã que nutre o personagem sejam melhor transmitidos, em quadros de rara beleza a enriquecer o universo maluco de Hellboy, e que se esconde de nós, de dia e de noite, bem abaixo de nossas camas.