Em 2006 eu estava em Israel a passeio, boa parte da minha família e alguns amigos moram lá, quando o país entrou em guerra com o Líbano. Estive lá por três semanas após o início do conflito e o que me chamou atenção foi a falta de surpresa, o preparo das estruturas, a visão da guerra como algo que chega, mais cedo ou mais tarde, algo natural do lugar.
Em 1991, Joe Sacco foi atrás dessa mesma sensação, mas do outro lado da Linha Verde (fronteira que separa a Israel reconhecida dos territórios disputados). Em primeiro lugar, é preciso notar que a realidade da região e da cobertura da mídia era outra nesse momento: a Intifada, movimento de resistência palestino lembrado sobretudo pela imagem de crianças atirando pedras, havia começado em 1987, a luta armada não estava estabelecida, os recursos de grupos militantes e terroristas não eram os mesmos, nem o apoio de países vizinhos como a Síria e o Líbano. Por outro lado, se a luta era menor, os jornais eram mais alinhados com Israel, pouco se sabia sobre a condição dos territórios que deveriam constituir o Estado Palestino. O livro conta com um prefácio de Edward Said e outro do próprio Sacco afirmando a importância desse mergulho, de se olhar para um povo que os jornais da época retratavam como apenas bárbaros atiradores de pedra.
Contudo, nos 20 anos que separam a escrita de Palestina da minha experiência com Israel, muita coisa mudou. Ambos os lados tornaram-se mais extremos, a mudança do governo israelense para a direita levou diversos veículos da mídia a adotarem o lado palestino e 1948 está distante demais para lembrarmos porque aquele país foi criado às pressas. Tudo isso influencia e enriquece a leitura da graphic novel de Sacco.
O autor visitou a Palestina como um jornalista independente, entrou em casas, fez amigos, conheceu e conversou com os habitantes de Gaza, Nablus, Rafah, Kalândia e diversos campos de refugiados. É tão importante lembrar da mudança na abordagem dos palestinos porque de início Sacco tem uma missão muito clara que hoje parece menos necessária (em parte graças a ele): mostrar os palestinos como vítimas. Mostrar seu sofrimento, os abusos, a situação quase desumana em que vivem. Tudo isso é importante, ainda hoje é importante lembrar, mas a agenda muito definida do escritor incomoda.
No entanto, conforme convive com essas pessoas e ouve as mesmas histórias milhões de vezes, os sentimentos de Sacco tornam-se mais ambíguos: todos foram presos injustamente, ninguém nunca fez nada, mesmo os filiados a grupos extremos como o Hamas ou a Jihad Islâmica, ainda assim, carros explodem e ônibus são jogados de barrancos. Isso não escapa ao autor. Também não escapa aqueles que vivem em uma grande casa, no meio de um campo de refugiados miserável, e reclamam das imposições econômicas.
Palestina está em seu melhor quando Sacco não tenta se excluir da história, ou disfarçar seus preconceitos: ele é um ocidental, um americano, em terra islâmica e lhe incomoda a posição das mulheres, o ódio expresso tão sem disfarces. Ele quer entender aquela gente, mas não consegue, se compadece de verdade com seu sofrimento, mas ainda se sente alheio, muito distante da realidade das pessoas com quem conversa. Ele quer vê-los como iguais, mas não pode e sabe que o problema não está com eles, mas consigo mesmo, tão cheio de preconceitos, mesmo sendo tão liberal. A coragem de expor pensamentos óbvios, mas incômodos, é o que a HQ tem de melhor, assim como o detalhamento dos desenhos do autor.
O traço de Joe Sacco é realista, exceto para seu próprio personagem, e há diversas imagens de página inteira de campos de refugiados esburacados, lamacentos, frios e desumanos. As expressões de ódio são enfatizadas, quadros em que há apenas o rosto de um personagem, muito grande, espumando de raiva contra o oponente. A imagem nos coloca dentro daquelas salas de estar, cheias de homens (há pouquíssimas falas de mulheres em Palestina) e chás, conseguimos imaginar vivamente os gestos e o tom exaltado dos interlocutores do jornalista.
Palestina é, assim, um livro corajoso. Importante por sua iniciativa, mas mais importante ainda por reconhecer suas limitações. Sacco afirma para as duas israelenses no fim do livro que foi até ali conhecer os palestinos, o lado palestino da história, não tem pretensão de entender a situação toda. Nem poderia ter. Ao conversar com as moças ele ouve, como ouviu do outro lado, opiniões contraditórias, medo, cansaço e ilusões que se repetem, até hoje (já não sei mais quantas vezes eu também ouvi a mesma rotina “o exército israelense atira primeiro nas pernas, dá um aviso, só depois mira no tronco, se o oponente não obedecer”). O maior defeito do livro é que é extremamente repetitivo, ouvimos a mesma história várias e várias vezes até que no final nem escritor nem leitor aguentam ouvir a mesma narrativa, sempre exatamente a mesma narrativa. A repetição é importante na tentativa de ser o mais imparcial possível (sempre sabendo que não será) e no esforço de Sacco para representar seus sentimentos ambíguos, mas acaba entediando um pouco o público.
No fim, o que temos é um livro incompleto, falho, parcial, mas esse é o único jeito de abordar essa questão. Joe Sacco faz esforço para dar voz ao lado que não tinha voz, mas não tenta convencer ninguém de que estão certos, ou de que ele sabe o que é certo, ou de que poderia sequer sugerir alguma solução para aquilo tudo. Ele não pode. O tempo que passa na Palestina lhe comove e repele em partes iguais e no fim, ele só pode chegar a única conclusão que parece viável: é uma discussão de dois lados errados.
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Texto de autoria de Isadora Sinay.