Alan Moore é o Deus adulto das HQ’s. Pra muita gente essa é única verdade a se seguir desde que Watchmen saiu dos seus dedos e das unhas sujas de Dave Gibbons pra mudar o jogo na nona-arte, mostrando que quadrinhos também podem ser coisa pra poucos adultos, já que a maioria não estava preparada para uma dose letárgica de Moore. Aquelas que libertam nossa cabeça, e nos mergulham num nível sensorial abissal de experiências com a mídia que o escritor devotou sua vida inteira, elevando os patamares do seu campo de batalha, antes de poder voar com as suas próprias asas, e com Um Pequeno Assassinato ele finalmente consegue essa pretensão, ou melhor, essa necessidade, numa excelente parceria essencial com o também veterano desenhista Oscar Zárate.
Temos aqui uma obra repleta de camadas que merecem ser descobertas e redescobertas ao longo de surpreendentes releituras. Quando Moore enfim se livrou dos super-heróis que lhes deram um prestígio nunca antes almejado por um escritor de quadrinhos, ele metaforizou, através da figura de Timothy Hole (um publicitário atormentado por seu passado relutante) o seu cansaço e sua própria repulsa por todo o mercado editorial norte-americano comandado pelas velhas DC e Marvel Comics. Assim, o mago britânico escolheu esta história e seu desenhista colaborador para poder respirar, ser um artista livre, fiel a si mesmo, tornando visível a partir de situações e imagens psicodélicas, e múltiplas associações entre realidade e ficção, um passado que o caça, e que ele (Timothy Hole) renega até o fim. Bem antes da sua conclusão, porém, a proposta de se produzir uma obra literária inquietante e maliciosa é nítida desde o início, como, é claro, não poderia deixar de ser.
Ilustrando as andanças do recluso e misterioso Timothy, percebemos passo por passo que seu tormento não mora em encontrar soluções criativas para divulgar um produto em determinado local (rotina de todo publicitário), mas em ser perseguido pela figura “inconveniente” de um menino que, real ou não, é vivo e significativo demais para ser ignorado. Um Pequeno Assassinato não é icônico, ninguém fará spin-offs hollywoodianos sobre ele, mas é uma ode a todo homem comum cujo passado complicado e conflituoso merece ser visto pelo viés do extraordinário, e do encantamento que o cotidiano mata e não nos deixa observar, olhando pra trás. Juntando suas palavras com os traços e as ideias inconfundíveis de Zárate, tal encantamento torna-se irresistível ao traduzir em imagens repletas de cores e formas e enquadramentos impressionantes a pressão psicológica e emocional que o próprio Moore sentiu, tentando desvincular-se de uma indústria que queria comprar sua alma.
Leitores não devem ser subestimados, receptor nenhum, a bem da verdade, uma vez que podemos sentir quando um artista atua para expurgar seus demônios através do que faz, e aqui não é diferente, com doses cavalares de uma inteligência e elegância a toda prova. A versão brasileira desta graphic novel, termo para quadrinhos encadernados que Alan Moore e seus desenhistas colaboradores tornaram mundialmente populares após tantas empreitadas históricas nos anos 80 e 90, não poderia ser de fato superior. A editora Pipoca e Nanquim realiza aqui um admirável trabalho de revitalização qualitativa da obra original, evidenciando os méritos e prestígios artísticos do livro num tratamento impecável, página por página, contando com a tradução eloquente de Marília Toledo em pequenos grandes momentos que refletem, com perfeição, a força dramática que a dupla empregou, no seu idioma autêntico. Nada mais respeitoso a uma das melhores crias (sem exageros) de um gênio literário dos nossos tempos.
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