Pensado anteriormente sob a premissa de adaptar uma fase bastante específica dos quadrinhos do universo de Batman, cujo caráter foi mudado estrategicamente para arrebatar ainda mais os fãs do Morcego, Gotham deveria ter sido baseado nas aventuras dos policias que protagonizavam Gotham Central – ou Gotham City Contra o Crime -, uma revista pensada por Ed Brubaker e Greg Rucka, e levada por um grupo de policiais secundários.
O protagonismo da série produzida por Bruno Heller seria do jovem James Gordon, vivido pelo eterno Ryan de OC – Um Estranho no Paraíso, Ben McKenzie, como o único jovem policial incorruptível da cidade, que tem em seu comportamento um quê de justiçamento forçado, semelhante ao dos anti-heróis clichês dos anos 90. Seu papel no início é servir de suporte ao menino Bruce Wayne (David Mazouz), que acabou de perder seus pais, e que graças ao “talento” do ator, seria um personagem recorrente na cidade, onde seria o paladino da luta contra o crime.
Sua perseverança esbarra na burocracia do policial, avisado pelo veterano parceiro de James, o detetive Harvey Bullock (Donal Logue), um sujeito que não parece ser corrupto, a princípio, mas que claramente se mostra desacreditado no sistema judicial da cidade, e com a demora com que os culpados têm em ser encarcerados. Desiludido, ele mantém contato com os principais marginais da cidade, especialmente Fish Mooney (Jada Pinkett), uma negra, chefe de uma das gangues do submundo, que tem em seu plantel Oswald Cobblepot (Robin Lord Taylor), entre outras tantas referências a vilões e personagens canônicos das histórias do Batman.
Mesmo no começo da sua trajetória, Jim encontra enormes percalços, não só entre seus opositores, mas também entre os outros policiais que não toleram suas atitudes, especialmente Rene Montoya (Victoria Cartagena) e seu parceiro Crispus Allen (Andrew Stewart-Jones). A pressão em cima dele é grande. Obrigado a assassinar um opositor, claro, recusando tal ato, Gordon usa sua astúcia para fugir do ato fatal, atitude que faz dele um proto-Batman, para nenhum espectador desavisado reclamar.
Os pontos mais irritantes no decorrer da série são as concessões que desnecessariamente descaracterizam os personagens famosos nos quadrinhos de maneira absolutamente gratuita. Sarah Essen, que na história mais famosa foi amante de James Gordon em Batman – Ano Um, é apresentada como chefe do Departamento de Polícia. De loura fatal, semelhante às coadjuvantes de filme noir, passou a ser uma negra de meia-idade e amarga. Vivida por Zabryna Guevara, a personagem é absolutamente genérica e não necessitava de qualquer menção. Nem a beleza da atriz rivaliza com a da dondoca Barbara Kean (Erin Richards), com quem o tenente é amasiado.
O roteiro parece mais preocupado em bradar que há mil personagens conhecidos do que se preocupar em contar uma história minimamente decente, se valendo de romances que evadem o conservadorismo unicamente para prender o espectador sob uma aura de polêmica que nada tem a ver com o clima do seriado, o qual já havia aberto mão do estilo noir na concepção de suas figuras retratadas.
A quantidade de tramas paralelas é absurda. Há desde a pequena Selina Kyle (Camren Bicondova), que já na faixa de uma década de vida pula de prédio em prédio, como um gato, roubando quem se permite roubar, além de munir Gordon de algumas informações sobre o assassinato dos Wayne, investigação que se mistura ao principal plot explorado. Cory Michael Smith vive o auxiliar de mistérios do Departamento, Edward Nygma, desde já muito afeito a crimes cujas soluções fogem da ortodoxia pragmática comum do “tira e bandido”. Mas é o desaparecimento e reaparição do Coblepott que concentra a maior parte das atenções do espectador, questão piorada pela quantidade de assassinatos que comete a sangue frio, aproximando-o mais do arquétipo do Coringa do que do vilão ornitólogo. É deste núcleo do qual aparece a primeira figura vilanesca, que apresenta mais do que a simples vilania, pois é ao menos um clichê bem construído. O Sal Maroni de David Zayas ao menos inspira medo, aspecto que difere de Pinguim, Fishmoney e mesmo de seu rival, Carmine Falcone (John Doman) – o qual parece estar mais envolto em questões burocráticas do que na busca por mais poder e expansão no submundo de Gotham. Maroni é o exato contraponto de Falcone: violento, cruel, arrogante e com uma megalomania que transcende a condição de vilão comum, aproximando-o do que deveria ser um bandido preso no Arkham.
A primeira virada realmente importante no combalido texto de Gotham acompanha a perseguição de Fish Mooney a Gordon, após descobrir que o policial foi honesto demais ao não assassinar Oswald. Além da óbvia perseguição dos malfeitores, há um sério problema de confiança entre o protagonista e Bullock, além de revelar que ambos estavam envolvidos com os contraventores de Gotham.
Em determinado momento, os personagens passam a ser mais interessantes, autônomos, além da clara alusão às suas contrapartes quadrinísticas, mas ainda assim pecam demais na concepção. A mudança das indiscrições conjugais de James faz do personagem, apresentado em Ano Um como um homem repleto de falhas, um paladino gratuito, cujo monopólio da virtude é evidente, empobrecido em essência a troco de nada, fugindo mesmo das questões complicadas de modo demasiado fácil.
A midseason se encerra com a derrocada de Gordon, já sem sua esposa, perdendo os direitos que tinha enquanto policial, gradativamente até se rebelar contra a figura do prefeito James Aubrey (Richard Kind), que usa seus contatos para rebaixar o detetive à guarda dos corredores da “nova” instituição que reabilita criminosos insanos. Trabalhar em Arkham é um dos poucos pontos irônicos do roteiro do seriado. A mudança serve basicamente para inserir a personagem Leslie Thompkins, e sua voluptuosa intérprete Morena Baccarin, uma vez que Gordon consegue através de manobras ardilosas retornar ao Departamento de Polícia, aumentando seus feitos ao faturar a bela mulher para si, a despeito de sua “separação” traumática.
Constrangedoras são as interações de Selina com Bruce, quando a menina ensina o milionário a se equilibrar. Mais e mais aspectos toscos são levantados, como a origem do soro do medo usado pelo Espantalho, além da crescente interferência na disputa de poder do submundo do crime, mostrando uma estranha harmonia entre Maroni e Falcone, tendo em Fish Mooney a persona non grata. Cada um destes quatro pilares se arranja ao seu modo para permanecer vivo e prosseguir mandando em alguns aspectos da criminalidade urbana, ainda que os lucros estejam longe de ser prioridades para eles.
A falta de apuro e verossimilhança no texto final trazem momentos completamente confusos, como o retorno de Barbara Gordon a sua casa, e a convivência pacífica da garota com Selina e Ivy Papper (Clare Foley), chegando a ponto dela se consultar com duas crianças a respeito de moda. Próxima do final do ano, há uma tentativa falha de amadurecer o plot ao mostrar o destino esquisito de Fish Mooney, apresentar uma nova faceta ciumenta para Barbara, e a apresentação de um serial killer, fazendo desse um dos poucos plots realmente interessantes em todo o folhetim. No entanto, mesmo os bons conceitos se perdem em meio aos acontecimentos chocantes, que não guardam qualquer possibilidade de seriedade, envolvendo tanto a dificuldade de Nygma em se relacionar com mulheres, e sua consequente agressividade, assim como o namorico entre os pequenos Bruce e Selina, com uma reedição da dança de Batman – O Retorno, ainda que em uma versão teletubizada.
Grande parte do mote de O Longo Dia das Bruxas é referenciada, com as inserções de guerras ente grupos mafiosos, que finalmente têm um embate minimamente interessante, apesar dos muitos problemas de amnésia do roteiro, que simplesmente ignora. Infelizmente, tais aspectos positivos ficam para trás, não só para os cosplayers mal desenvolvidos, como para a tramoia imbecil.
Mais assustador ainda é notar que a guerra entre Maroni e Falcone, unido a traição de Cobleppot consegue ser jogada para o lado, em nome do ressurgimento de Fish Mooney, que pratica uma ressurreição com a imitação dos Morlocks. A profusão de plots mal concebidos faz com que uma porção de mortes desnecessárias ocorram, inclusive de personagens que um dia enfrentariam o Batman. A confusão do roteiro faz com que mesmo o protagonismo entre os vilões não seja claro, ao contrário; tudo soa falso, estúpido e vazio.
As relações de amor e ciúmes se confundem, e as conclusões emocionais são catastróficas e sem sentido, especialmente as envolvendo James Gordon. Nada no combalido seriado é tão mal feito e chocante negativamente quanto o dos últimos vinte minutos da temporada, com reviravoltas infantis e trocas de lado que não fazem qualquer sentido, com direito a redenção de vilões e ataques de insanidade vindos de personagens que eram canonicamente inofensivos. Não há problema algum em se adaptar personagens, inverter falas ou fatos, desde que haja a manutenção da essência da atmosfera de Gotham City, o que definitivamente não ocorre no seriado homônimo.
O destino dado às personagens, na imitação barata da sequência batismal de O Poderoso Chefão, revela o quanto Gotham é acéfala em matéria de vilões. A fala do Coringa de Heath Ledger em Cavaleiro das Trevas serve ao propósito, fazendo da afirmação de que “Essa cidade merece um tipo melhor de criminoso” estende-se, inclusive, aos arquétipos dos heróis, visto que não há como acreditar que um policial honesto como Gordon seria seduzido e inspirado por um mafioso, tampouco há graça na indicação premonitória do falecido patriarca Wayne, intuindo que seu filho precisaria de uma entrada secreta na mansão, preparada atrás de uma lareira. Gotham consegue deturpar, de uma maneira quase tão patética quanto os filmes de Joel Schumacher, os preceitos de Batman – Ano Um e de tantos outro clássicos do Morcego, possuindo pouquíssimos acertos, mesmo que o elenco não seja ruim.
Não cheguei a ver a serie na sua totalidade, mas só de desvirtuar a obra que é “Ano Um” já olhei achando que algo iria me incomodar, mas na sua crítica, da pra perceber o quanto raso foi a série.