Minissérie documental, trazida ao Brasil pela ESPN, O.J.: Made in America possui cinco episódios, com piloto produzido a partir de uma gravação de 2007, com O.J. “Juice” Simpson vestido a caráter como réu diante da junta jurídica que analisaria seu caso. Ao ser indagado sobre o caso, que ocorreu em 1995, o ex-jogador se sente incomodado, como se tal assunto fosse algo já passado. O produto do diretor Ezra Edelman – notório documentarista da série 30 for 30, e produtor de Cutie and The Boxer – se debruça sobre o brilhante início de carreira, ainda pela universidade de Los Angeles, onde O.J. fez jogadas fantásticas e entraria para a história como um dos expoentes do futebol local, esperança de tempos de glória no futuro, e como acabaria se tornado fatalmente.
Ainda no capítulo se exalta a participação majoritária da comunidade negra no ideário de Juice e o quanto foi difícil passar pela USC Trojan Football Team, uma universidade composta quase na totalidade por caucasianos, além de mostrar o jogador como uma das partes que foram convocadas a discutir o alistamento militar obrigatório com Cassius Clay e outros esportistas. Destaca-se o fato de Simpson deixar seus companheiros de atletismo de lado – era corredor, além de futebolista – tencionando não ser julgado como ativista, descolando sua imagem do típico atleta negro, fato que de certo modo já demonstrava um pouco de seu caráter.
A faceta carismática de Juice é muito bem exemplificada, mostrando que, mesmo sendo estereotipado pela sociedade, sua figura vendia muito, inclusive para a parcela da população de cor branca. A evolução foi vista em alguns de seus filmes, como no telefilme The Killing Affair e nos produtos para o cinema Capricórnio Um e Inferno na Torre. O afastamento da comunidade negra se manifestaria também em seus hábitos e em sua entrada na alta sociedade, como parte daquele grupo composto basicamente por homens brancos, e os frutos disso seriam colhidos no futuro.
A aposentadoria foi bem mais complicada do que se imaginava, com Juice não conseguindo deslanchar na função de comentarista esportivo. A sorte do ícone é que ainda tinha para si a carreira como astro de filmes pipoca, principalmente em Corra Que a Polícia Vem Aí. O cuidado maior da série é em retratar os fatos polêmicos da vida de OJ e deixar por conta de seus amigos o julgamento de valor, como com Joe Bell, que é a voz rouca que protagoniza o discurso nos trailers e materiais promocionais, lamentando profundamente os rumos sentimentais que OJ tomava, desde o primeiro divórcio com Marguerite Whitley, até as acusações de agressão a sua segunda mulher, Nicole Brown, fato que mudou muito a visão de bom moço que o cercava.
A série não cai no perigo de apelar para o sensacionalismo barato, somente incorrendo sobre o grave caso envolvendo a morte de Nicole Brown no começo do terceiro episódio, ou seja, na metade do seriado. A parte investigativa é repleta de emoções e informações, entrevistando principalmente os que eram caros para Nicole. Há declarações inclusive de que ele estaria sedado no dia do velório, sem ter noção do que ocorria ali, achando que ainda assim as coisas se encaixariam bem.
A tentativa de fuga, o registro de como a opinião pública foi aos poucos deixando de ser empática, e nem a interferência de Robert Shapiro, conhecido como um operador de milagres no tribunal, conseguiu mudar tal quadro. Cada vez mais Juice parecia um sujeito que cometeu homicídio. O quadro era tão grave que a contratação de John Cochran se tornou uma questão de necessidade, ainda mais com a crescente escalada de sucesso da promotora Marcia Clark.
A opinião pública composta por mulheres e homens negros mudaram por completo os rumos do julgamento, assim como a estratégia de guerra, já que OJ era malquisto por mulheres negras por ter se envolvido com Nicole, enquanto ainda era casado com Marguerite, além de se tornar cada vez mais comum por parte da imprensa a crença de que as juradas negras odiavam Clark, ainda que negassem. A estratégia de Cochran acertou em aproximar OJ da figura de celebridade negra, mesmo que jamais fosse identificado com os seus. A sensação de ilusão criado pelo jurista célebre é bem apoiada nas entrevistas e nas cenas do documental.
A própria Marcia Clark dá declarações para o documentário, e discorre o quanto de farsa existiu no uso das luvas que estavam na cena do crime, incluindo o mini show que Juice fez ao tentar encaixar o objeto nas próprias mãos. Para os jurados entrevistados, a aparência das luvas faziam crer que cabiam em Simpson e a demonstração de que não cabiam foi a prova cabal do fracasso de Chris Darden em sugerir esse ato simbólico, uma perda desnecessária de moral, às vésperas da reunião de júri.
O programa mostra bem tanto o testemunho e as estranhas gravações de cunho racista do detetive Mark Fuhrman, quanto o discurso midiático e doce de Cochran, que enganou júri e público ao usar elementos que envolviam cartas marcadas, invocando a questão racial tipicamente discutida em lares e ruas americanas. O elemento da perseguição racial, que sempre foi refutado por Shapiro, acabou sendo preponderante no parecer positivo a Simpson.
O veredito de inocência desvelou para os desavisados o forte ressentimento racial que os negros americanos tinham pelos seus conterrâneos caucasianos, gerando uma maré de comemoração como se fosse essa decisão equivalente a uma conquista olímpica. No entanto, o lugar onde vivia Brentwood era lotado de brancos, os mesmos que acreditavam piamente que ele era além de um homicida frio, um psicopata capaz de fingir diante de todo um país que não cometeu os atos hediondos do qual era acusado. Curioso é que, após ser ofendido de todas as formas por seus vizinhos de Los Angeles, foi nas igrejas cristãs compostas por negros que OJ foi aceito e não questionado das acusações, já distante de qualquer intimidade, simbolicamente deixando de ser chamado de Juice, uma vez que não tinha qualquer proximidade daquelas pessoas.
O.J., ao ser perguntado sobre Nicole, mostrava ressentimento e tentava passar a quem fosse a certeza de que sua ex-mulher era impossível. Não chorava nem por sua antiga amada morta, nem receava que a criação de seus filhos ocorresse sem a figura materna. Ao dar um depoimento posterior ao julgamento, anos depois, quando gravado, o ex-jogador parecia cínico e nada afeito à pressão que a família Brown fazia para tentar processá-lo, fato que contraria seu discurso pós julgamento, de que usaria toda sua influência para encontrar os assassinos de Brown e Ronald Goldman.
A decadência de Simpson se solidificou ao se perceber sem as mesmas fontes de renda. O sujeito passou a aceitar qualquer migalha, o que significava aceitar fazer aparições públicas com strippers e afins, além de participar de material de divulgação de vídeos pornográficos. O final do seriado mostra a prisão que fez de Juice novamente um encarcerado, que em breve dever ter um julgamento para liberdade condicional, mostrando o quão injusto e contraditório pode ser o sistema jurídico dos EUA. O.J.: Made in America não é só um estudo sobre o julgamento do século e sobre a possibilidade de injustiça através da exploração de carências do povo, mas também um retrato cru e visceral da alma do cidadão americano.