Do início, em que se espelhava apenas na popularidade e persona de seu protagonista – se valendo até do primeiro nome deste para o espécime fictício – Two and A Half Men reúne em si dois seriados distintos, um antes e outro depois da briga entre Charlie Sheen e o criador do programa Chuck Lorre. A despeito de escândalos posteriores, como os envolvendo August T. Jones, nenhum evento dentro ou fora da ficção poderia ser mais acachapante e preponderante para a qualidade da série.
Na primeira temporada, Charlie Harper é mostrado como um sujeito narcisista, de vida fácil, que mora em uma bela casa de praia em Malibu, colhendo os louros de sua portentosa carreira como compositor de jingles publicitários. Seu talento para música só não é maior que sua desfaçatez, que o impede de exercer seus dotes em qualquer evento que não lhe renda uma bela quantia em dinheiro. O modo bom vivant de existir faz com que ele seja um sujeito acomodado, conformado com o próprio modus operandi, só capaz de mudar após um evento tremendamente improvável de acontecer.
Um dia, seu irmão Alan (Jon Cryer) bate à sua porta, desabrigado após um casamento fracassado. Sua personalidade é completamente diferente da de seu irmão, uma vez que este é um completo repelente para pessoas do sexo oposto. A abordagem de Alan com as mulheres envolve basicamente o sexo por pena e relações curtas; as mais longas, terminando quase sempre em um ódio mortal, já que ele suga toda a essência delas. Alan carrega consigo seu filho Jake (Jones), que durante o programa vai crescendo, passando de uma figura adorável e carismática – ao menos para sensibilizar o frio coração de seu tio – para um adolescente em via de se tornar um homem.
A diferença entre ambos, especialmente em relação ao sexo, muito é justificada pela presença opressora da mãe, Evelyn, vivida por Holland Taylor, uma mulher dominadora, que exerce sobre os filhos uma terrível influência, resumindo os comportamentos dos filhos aos de uma dupla de infantes. Outros personagens importantes os orbitam, como a stalker Rose (Melanie Lynskey), uma louca e irresistível ex-amante de Charlie, que sempre entra pela sacada da cobertura. Outro personagem periférico importante é Berta, vivida pela veterana Conchata Ferrell, que só não teve mais participações no seriado que Cryer e Jones.
Entre momentos poucos e muitos inspirados, os irmãos trocam farpas, acusações e até parceiras sexuais. Especialmente Alan, que se mete em muitos apuros: após o primeiro divórcio, ele se casa de novo com Kandi (April Bowlby), uma moça mais jovem e atraente, que acaba dispensando-o. Os apuros pioram quando, em uma recaída, transa com Judith (Marin Hinkle), para logo depois engravidá-la, deixando a dúvida de que ele seria o pai.
No decorrer da sexta temporada, um amigo de Charlie, interpretado por Emilio Estevez falece, fazendo o protagonista imaginar como seria o seu próprio funeral após uma vida repleta de bebedeira e muito sexo. Em sua elucubração imaginativa, ele vê cada uma das mulheres com quem ficou cuspindo em seu caixão, reflexo das muitas rejeições provocadas pelo personagem após noites de prazer. O desespero faz com que ele se aproxime de seus parentes, mas isso logo passa, mostrando que sua motivação tem muito a ver com o medo de morrer e perder todas as regalias que sempre teve; qualquer reflexão além disso foge de sua rotina.
Do sexto para o sétimo ano, uma relação se fortifica, com a entrada da personagem Chelsea (Jennifer Taylor) à série, e naturalmente a moça transita da posição de transa casual para namorada e até noiva do eterno solteirão. O relacionamento dura um bom período, somente interrompido após uma briga, que incrivelmente não inclui nenhuma infidelidade do bêbedo compositor. Charlie se insere na completa fossa após o rompimento, sentimento que perdura por todo o fim do sétimo ano.
A comédia de constrangimento de Alan segue viva, piorando de quadro na sétima temporada, com a inserção de mais um de seus pares fixos, Lyndsey Mackelroy (Courtney Thorne-Smith). Seu destino se inverte com o de seu irmão mais velho, no último ano, com a presença de Cheen no elenco. Charlie se torna um deprimido, que não consegue mais se relacionar com mulher alguma, a não ser profissionais do sexo, numa alusão clara à desilusão amorosa causada pelo último rompimento. Após algumas tentativas frustradas de se comprometer com outras mulheres, Charlie percebe a contrapartida do que sente por Rose, atentando para a razão de nunca ter cortado relações com a stalker. Após um casamento fake, feito para enganar o protagonista, o musicista começa a perseguir sua amada.
O último capítulo do seriado termina com Charlie convidando Rose a ir a Paris, onde a surpreenderia com um pedido de casamento, sem sequer notar que estava sendo enganado. Aquele seria seu último momento como protagonista do show de TV, que retornaria em sua primeira cena do ano seguinte em um funeral, que conta com a presença de muitos dos seus conhecidos, inclusive de algumas mulheres com quem dormiu, a maioria aliviada por não ter mais a fonte de suas DSTs presente em vida.
Após a chegada da urna que continha as cinzas do primogênito Harper, o novo astro do show aparece, ensopado, na varanda da casa de Malibu. Walden Schmidt, um depressivo bilionário, que acabou de romper um relacionamento, tentava suicidar-se de modo atrapalhado. Logo, Walden vence seus instintos de autoflagelo, transando com duas mulheres na primeira noite que passa no cenário predominante de Two And A Half Men. Walden decide comprar a casa. A proximidade entre os dois, que acabaram de se conhecer, aumenta a ponto de Alan ir viver com o recém-dono da casa, algo comum, dada a infantilidade latente do novo hospedeiro.
A falta de criatividade acomete os roteiristas, que reprisam muitos dos dramas de Charlie, como o fato do protagonista ser preso a uma mulher do passado e ser fruto de inveja por parte de todos os personagens masculinos mostrados em tela. A mudança na arquitetura e a falta de desprezo de Walden por Alan parecem ser algumas das poucas diferenças entre os dois. Bridget (Judy Greer) chega a ponto de perseguir seu antigo amado, como Rose fazia antes, para depois voltar à configuração original.
No décimo ano, Walden ainda se recupera de um namoro fracassado, se inserindo em relação malfadada atrás da outra, tendo que lidar com a temível condição de ser um bilionário e de ter belas mulheres o cercando sempre. O pobre homem rico chega a se fingir de pobre para namorar uma moça simples. Toda essa problemática supera e muito os dramas de Jake – que se alista ao exército, e quase não aparece mais, graças a um ataque relativo a uma conversão religiosa de seu intérprete –, e, claro, a vida medíocre e parasitária de Alan, que a duras penas consegue manter seu namoro vivo, apesar de todo o seu derrotismo.
A pergunta que persiste desde o nono ano não é respondida: o motivo pelo qual Alan continua na casa de Walden é discutido por cada mulher que habita a cama do gênio da internet. A insistência neste estado de dependência de um estranho do mesmo sexo ao outro faz reacender muitas perguntas, especialmente ligadas a um romance homoafetivo de cunho grotesco, visto a disparidade estética entre os “amigos”.
Após o season finale número 10, Jake anuncia sua transferência para o Japão. O décimo primeiro ano já não teria sua presença no elenco, com uma estranha substituição logo no primeiro episódio: Jenny (Amber Tamblyn), a filha beberrona e lésbica de Charlie. Perdida entre romances tórridos do passado, ela é convenientemente trazida à tona após a queda de mais um dos tripés da série, o segundo em menos de três anos. O começo da temporada reaviva o fantasma de Charlie Harper, vivido por Kathy Bates, tornando-o mais uma vez o motivo de depressão e lamento, jogando Walden (mais uma vez) para o papel de coadjuvante.
Após o anúncio de que o décimo segundo ano seria o último do seriado, Chuck Lorre decidiu que seria aprazível aumentar a família presente na casa e a tensão sexual entre os participantes. Depois de quase morrer devido a um infarto, Walden repensa seus objetivos de vida, e para dar fim à sua solidão, escolhe tentar adotar uma criança, o que, para efeitos práticos, tem dificuldade em fazê-lo estando solteiro. A profecia se cumpre, com Alan sendo a nova noiva do bilionário, para ficarem, como casal, mais fortes na possibilidade de adoção.
O disparate começa pelo fato de que são dois héteros fingindo ser gays, e que deveriam demonstrar uma afinidade grande o suficiente para convencer os responsáveis pela adoção de que não são uma fraude. A intenção de abranger o público LGBT é singela, mas executada de modo ofensivo para essa parcela da população, já que o pressuposto é de que se passar por gay é uma tarefa fácil.
Após muitas trocas de casais e situações constrangedoras, Walden consegue enfim adotar Louis (Edan Alexander), e o esperado fim da estranha relação dos Harpers com os Schmidt tem um fim anunciado. O décimo quarto episódio serve, entre outras coisas, para fechar as pontas abertas dos últimos quatro anos, unicamente para dedicar o series finale ao pensamento abstrato e ao mal concebido final, que uniria as duas principais fases do seriado, praticamente ignorando o último protagonista, referenciando a persona que Chuck Lorre considerava ingrata. A postura, apesar de contraditória, guarda uma certa lógica, dada a carência e arrogância do personagem principal feito por Ashton Kutcher, que não se via bem sem a presença parasitária do divorciado Alan.
Os convites dados a Charlie Sheen soaram estranhos, segundo os boatos, com propostas esdrúxulas que claramente mudariam todo o rumo do programa de aproximadamente uma hora de duração, contando intervalos comerciais. A ausência do astro o elevou a um patamar de fama ainda maior do que possuía, fazendo do seu atual programa – Anger Management – um show bastante visto para as pretensões de seus empregadores, que exibiram 90 episódios ininterruptamente, por dois anos, talvez por medo de também perder seu protagonista. Mesmo não estando presente, a aura de Charlie venceu qualquer concorrência com Kutcher e, especialmente, com Chuck Lorre, que quis se aproveitar do hype e ainda alfinetar seu desafeto.
Charlie Harper em animação, uma piada super original de Lorre
As primeiras cenas remetem ao primeiro episódio da era Walden, com o recordatório do suposto funeral sem corpo de Charlie, para logo depois mostrar Rose indo até seu porão para alimentar um prisioneiro em um poço. O pretexto para a fuga finalmente ocorre, e elementos da sua sobrevivência são enviados aos seus familiares. A partir daí, tudo em volta começa a parecer ainda mais deslocado, incluindo as interações de Walden, que deixa de ser o pegador com pênis gigantesco para se tornar um sujeito que precisa de ajuda de uma revista feminina para fazer uma mulher gozar. Daí, mil piadas com o fim do seriado são lançadas, entre elas a participação de Arnold Schwarzenegger como relator do caso das ameaças de Charlie, sendo somente um pretexto para tratar dos detalhes da trama. Algumas cartas para ex-namoradas também são enviadas, além de lembrar (finalmente) a ausência de Charlie enquanto pai de Jennifer. August T. Jones também retorna para reavivar seu personagem e ser ovacionado pela louca plateia, com uma sequência que mal dura dois minutos.
A vingança de Charlie Harper quase se realiza, e é interrompida por um remendo de roteiro dos mais vergonhosos já vistos na história da TV americana, com a última quebra da quarta parede. Surge um soberbo Chuck Lorre, que assassina seu xará e desafeto, para logo depois ser esmagado por um piano, usando um artifício típico de um desenho animado como alegoria de sua própria mentalidade infantil, fechando melancolicamente o seriado que deveria ter ao menos metade da duração que realmente teve. Em brigas de ego, é difícil ter qualquer possibilidade de boas saídas, mas certamente nem nos piores pesadelos dos fãs de Charlie Sheen, Two and a Half Men e até de Chuck Lorre, imaginava-se algo tão baixo e fraco quanto o que foi exibido. Charlie, Alan, Jake, Berta, Evelyn, seus respectivos pares, e até Walden Schmidt, mereciam um desfecho mais bem elaborado, sem suas relevâncias banalizadas e sem um fim tão abrupto, vazio e sem razão de ser, de um programa que jamais foi um primor no quesito roteiro, mas que tinha no carisma de seus personagens uma boa alternativa de despiste.
Nem mesmo isso sobrou. As aventuras na casa de Malibu com bebidas, strippers e afins não serão tão inspiradas e lotadas de mulheres, álcool e boêmia quanto eram antes.
Ótima crítica!