A potência dos relatos em quadrinhos se encontra muitas vezes no impacto que estes causam em seus leitores, mas muitas vezes esse choque se dá não por tocar em eventos de proporções épicas e incríveis, mas justamente por dar a perspectiva do banal, dos pequenos momentos que transformam as vidas das pessoas diariamente.
Em Deslocamento: Um Diário de Viagem, a norte-americana Lucy Knisley narra os acontecimentos de uma viagem que ela realizou como acompanhante de seus avós, já envelhecidos e absolutamente dependentes de sua constante vigilância. Não fosse pela sensibilidade da autora, tal evento poderia passar despercebido, visto que dentro das relações familiares o cuidado para com os mais velhos é algo comum.
Lucy relata com maestria o contexto que envolveu sua decisão de acompanhar os avós em um cruzeiro pelo Caribe, um passeio atípico para pessoas como eles, que já se encontravam bastante limitados pela ação do mais implacável dos inimigos: o tempo.
A relação do ser humano com o passar do tempo é a tônica de Knisley nessa história em quadrinhos, uma vez que a narradora-personagem expõe de maneira bem clara ao longo da trama sua estupefação e inadequação com os efeitos que o tempo gerou em duas pessoas as quais ela amou e conviveu desde a mais tenra idade.
Tal sentimento ressoa no leitor de forma contumaz, uma vez que todos nós estamos à mercê da passagem implacável do tempo, que se descortina diante de nossos olhos, levando de nós nossos feitos, nossas memórias, tudo aquilo que batalhamos literalmente durante uma vida para conquistarmos.
A perda da autonomia, os lapsos de memória, as extravagâncias e cismas típicas da velhice são bem abordadas por Lucy Knisley, que expõe com muita naturalidade situações constrangedoras, como a incontinência urinária do avô, as confusões mentais da avó, tudo de forma lúdica e bem realista.
É tocante a forma como Lucy passa por essa experiência se questionando a todo momento sobre o objetivo daquilo tudo, bem como demonstra a todo instante o amor e o respeito com o qual encara aquelas pessoas que, ainda que atualmente fragilizadas, já lhe foram muitas vezes um sólido ponto de referência na vida.
Os questionamentos pelos quais a autora se coloca são deveras pertinentes, visto que ela coloca em xeque temas como formação acadêmica, generosidade, egocentrismo, expectativas familiares, dentre outras divagações às quais ela se permitia embarcar, durante os cerca de dez dias de viagem. As reflexões de Lucy alcançam tamanho nível de complexidade e variedade que permeiam temas como a guerra, uma vez que ela passa a viagem toda lendo, quando possível, o livro de memórias do avô, um combatente da segunda guerra mundial.
Na novela gráfica podemos, indubitavelmente, observar uma verdadeira trajetória de crescimento pessoal da narradora-personagem, o que gera diferentes interpretações para o próprio título da obra, uma vez que o deslocamento físico de Lucy e seus avós nessa experiência conjunta só não é maior do que o deslocamento emocional da autora, que atravessa suas questões com o passar do tempo, se interpondo nessa relação cruel e inevitável, buscando apreender o máximo possível das experiências que a vida lhe proporciona.
A arte de Lucy Knisley é extremamente dinâmica, usando e abusando das possibilidades geradas pela mídia quadrinhos. Os requadros das páginas em muitos momentos inexistem, deixando os espaços em branco ditarem a transição entre as sequências aparentemente soltas de imagens aquareladas que compõem a narrativa.
Utilizando-se de letreiramentos inventivos, Knisley não permite que sua história mantenha uma estruturação de cenas linear, optando por modificar-se a todo instante pela página, o que causa estranhamento no início, mas garante fluidez com o passar do tempo. Tal estratégia é arriscada, pois a ousadia em sua diagramação pode muito bem ser confundida com falta de esmero no trabalho de decupagem, bem como gerar uma sensação de confusão no processo de leitura.
A disposição textual da história, contudo, também confere uma proximidade maior do leitor com sua honesta narradora-personagem, uma vez que nos leva a entender de forma sincera, direta e límpida a maneira como ela se vê dentro de toda essa experiência de compaixão, altruísmo e amor genuíno.
Deslocamento: Um Diário de Viagem, história em quadrinhos publicada pela Editora Nemo em 2017 e que conta com cerca de 144 páginas e capa cartão, acerta em cheio ao trazer o leitor para perto da trama, para lidar com um tema tão tocante quanto a relação do ser humano com o envelhecimento e a compaixão que devemos ter para com todos e, sobretudo, para com aqueles que nos cercam.