Quase todas as vezes que se fala sobre as obras de Robert Crumb é preciso reforçar uma explicação óbvia sobre sua produção artística contracultural, e que buscava o choque da sociedade americana conservadora. Dito isso, América é mais um dos retratos do país onde nasceu e viveu Crumb durante a maior parte de sua vida, e a partir desta obra, ele ataca toda sorte de pessoas e alguns grupos sociais e culturais.
A altura que escreveu esses contos (a compilação compreende tiras de 1970 a 1997), o país estava em ebulição e a quantidade de pautas o deixava confuso, problema semelhante ao que ocorre nos últimos anos. O boneco de neve Frosty é outro bom exemplo disso, um personagem isento de ideologia, que não consegue entender o comportamento da esquerda, e essa digestão do tema é bastante madura e digna de reflexão, nas tiras antigas o autor acaba conversando até com questões mais recentes, como a dita zona cinza do eleitorado americano, que cansado de algumas posturas da esquerda, acaba sendo cooptado por parcelas reacionárias do espectro político, como Steve Bannon e o trumpismo soube aproveitar e surgir como alternativa.
Crumb é tão autossuficiente, que seus defeitos são aludidos por ele mesmo. A classificação para ele mesmo é de um sujeito paranoico, e ele não tem receio de parecer louco, ao desenhar a si mesmo dizendo que o governo ou uma “força maior” está querendo matá-lo, ao mesmo tempo que ele desdenha de liberais que separam o lixo em coletas, ao passo que também reclama da sujeira que os terceiro mundistas fazem ao chegar nos EUA. Em Whiteman ele faz troça com o homem branco que se julga invulnerável e super poderoso, para o autor todos esses personagens compõe a multi-identidade do país, a parte mais baixa e tosca da nação, algo completamente impossível de desassociar do que é América.
Próximo do final, o autor exibe versões diferentes de domínio tirânico, mostrando como seria o domínio cultural, político e econômico dos povos negros e judeus, respectivamente, sob um olhar dos que dominam. O modo caricatural como agem esses “tiranos” exibe a visão preconceituosa e falsamente benevolente dos brancos, mas não só dos sulistas tipicamente racistas, passando um pouco sobre o conceito que muitos democratas fazem desses povos.
Certamente essa compilação é uma das mais controversas entre as obras de Crumb, ele parece não ter qualquer receio de parecer malvado ou mal visto por seus pares, seja a elite branca e conservadora do país, ou os dito liberais, que evitam o moralismo barato mas que tem costumes condescendentes e se julgam superiores exatamente por fugir um pouco da mentalidade conservadora, embora não façam isso por convicção.
É quase profético que décadas antes de Donald Trump entrar para a política, o quadrinista tenha colocado ele numa história, para mostrar o quão decadente é a classe “empreendedora” dos Estados Unidos. Crumb tem coragem, ele não usa um paralelo com um empresário, literalmente desenha uma pessoa pública, em uma história pervertida que o coloca como o extremo avesso de Trump.
América termina sem verborragia, com gravuras sem falas, mostrando possibilidades de futuro, um pouco do passado, basicamente sobre a mesma paisagem, mostrando a transformação que o homem fez no cenário, e o quão predatória pode ser a presença humana, ao passo que também mostra que o mundo não tem como ser destruído por nós, já que o planeta se refaz.