Uma nova Hollywood está nascendo. Na ânsia de fazer o seu próprio Apocalypse Now com atores negros, algo que Hollywood passou a aceitar muito recentemente depois dos fenômenos Pantera Negra e Corra!, Spike Lee conseguiu uma oportuna parceria com a Netflix em tempos de Covid-19, e sem precisar distribuir seus filmes nos cinemas para esperar lucro nenhum, e realizou o seu Destacamento Blood sem as expectativas de retorno financeiro que todo grande filme carrega. Algo semelhante fez Martin Scorsese com seu O Irlandês, ou seja, se apoiar numa produtora que precisa de prestígio e grandes nomes já consagrados trabalhando pra ela. O próximo a lançar algo diretamente na maior plataforma de conteúdo do mundo será David Fincher (Clube da Luta) e o seu vindouro Mank, acerca dos bastidores caóticos de Cidadão Kane. Ainda em 2020.
Livre e com dinheiro (da Netflix) para trabalhar, vivendo o sonho de qualquer artista, o filme de guerra de Spike Lee (Faça a Coisa Certa) é uma assumida alegoria política sobre a natureza da culpa, e como ela pode ser um tumor que nos destrói aos longo dos anos sem dó, até que façamos algo com ela. Reunindo um elenco fantástico cuja raça difere-se do estereótipo branco que nos acostumamos a admirar em filmes e séries bélicos, já que todo soldado negro morre antes do final (o pior foi o pobre Bubba que nunca conseguiu vender seus camarões, em Forrest Gump, morrendo nos braços de Tom Hanks), agora a negritude protagoniza a sua própria missão de resgate, mas diferente de todas as outras: armados até os dentes e calejados pelos traumas do passado, quatro veteranos de guerra avançam nas matas do Vietnã para encontrarem os restos mortais de um velho amigo de combate, a fim de realizar um funeral decente ao corpo perdido e dar paz a esse espírito, morto em 1974 no maior fracasso que os Estados Unidos sofreram em conflito armado desde a Segunda Guerra Mundial.
Não, os americanos não gostam de falar nisso – preferem assistir o Dr. Manhattan surgindo no horizonte e vencendo a batalha. Verdade seja dita: muito sangue americano (58 mil brancos e negros) foi derramado naquelas matas, e fazer as pazes com nossos fantasmas nunca é fácil. Paul, Melvin, Otis e Eddie sabiam que a parada ia ser braba, mas quando o presente é um eterno passado, algo precisa ser feito – e o filme já começa com eles no antigo território inimigo, prontos para começarem a caça que, provavelmente, será só de ida devido à idade deles, e os perigos que podem encarar. Destacamento Blood é um filme que evita a insanidade de uma guerra, e a sensação aqui é 100% pós-traumática, como se o pior já tivesse passado e estamos agora andando num cemitério. Para quebrar o gelo, o roteiro de Lee encontra na ação e no absurdo de alguns momentos a adrenalina (a cena do campo minado é ótima) e a sátira (não confie em homens brancos ricos) mais do que necessárias para que o filme não seja uma experiência maçante.
A longa duração de Destacamento Blood nunca de fato se justifica, senão, para que os atores tenham tempo para brilhar nos seus papéis – principalmente Delroy Lindo, um monstro em tela. Seu Paul é um homem amargurado e cansado de tudo, mais que seus outros amigos, e que na busca pelo cadáver de Norman (o último papel de Chadwick Boseman, nosso eterno Pantera Negra) começa a questionar o que vale a pena na sua vida: nada. Um homem sem nada a perder é capaz de tudo, e soltos nas florestas vietnamitas por dias a fio, os quatro americanos e o filho de Paul, o jovem David, começam a se esforçar para que o lado animal de cada um não destrua essa “operação cata-osso”, ou ninguém vai se desculpar por terem abandonado o amigo Norman, quarenta anos atrás. Se o Amor e o Ódio andam juntos quando somos jogados no selvagem, qual o poder de Martin Luther King Jr. e Malcolm X num cenário de vale tudo? Spike Lee não quer responder nada: ele quer brincar com as imagens, e erra feio nisso.
O segundo principal problema de Destacamento Blood é a edição de “filme de mensagem” versus “entretenimento escapista”: uma montagem tresloucada que remete muito aos vícios de linguagem que ele soube utilizar muito melhor em Infiltrado na Klan, ou seja, frenética e fragmentada em diferente arcos de personagem, e utilizando-se de imagens documentais para encorpar esse forte teor de registro histórico sobre as guerras, e o racismo velado presente nelas. O ritmo do filme da Netflix é absolutamente comprometido por isso, por essa ambição de Lee em abraçar todos os temas possíveis que podem ser debatidos, e a sensação é uma obra muito dispersa e até mesmo incoerente no seu Todo, cheio de “barriga” como nos filmes mais fracos de Scorsese. Rejeitar o foco especial em um tema solo, para enlaçar de uma vez uma dezena deles, é uma armadilha velha que Spike Lee jamais deveria cair – e caiu. Mas esse não é o maior pecado de Destacamento Blood: nem de longe.
Para simbolizar dentro da narrativa o caos militar que foi a guerra do Vietnã, e a falta de vencedor ou perdedor quando tudo cessou, em 1975, Lee combate racismo com mais racismo, descontrole com mais descontrole (o que resulta em um filme descontrolado), reproduzindo toda a intolerância que Paul, Melvin e seus amigos receberam a vida toda, para com os nativos locais daquela mata, para brancos também, e o resultado é mais violência inadvertida ainda, sem propósito depois que o principal já foi alcançado. Em uma alegoria ingloriosa dessas, Lee quis explodir o caos que nunca abandonou esses veteranos, um caos que resulta, na vida real, na eleição de um Donald Trump que promove medo e preconceito em troca de uma soberania agressiva, porque o ódio vende, talvez até mais que o sexo. Destacamento Blood mira no filme denúncia e acerta em cheio no filme pipoca que se leva a sério demais, e acaba sendo um tropeço, ou seja, sem ter muito a dizer. Bem mais óbvio e problemático do que parece.