“Quem é Claude, esse impostor que se infiltrou como um verme na minha família e nos meus sonhos?”
O útero é um ambiente que todos nós já habitamos, a quarentena do começo dos tempos. Vagina e umbigo são duas portas de saída que, ao cruzá-las, entramos para a trupe de um espetáculo imprevisível cujo maestro, uns chamam de acaso e outros de Deus, Buda, etc . Ao sair pela outra porta, quando o seu show acabou, Brás Cubas viu passar um desfile com todas as eras da humanidade, seus impérios e foguetes, suas guerras e obras-primas, no seminal romance de Machado de Assis. E se Cubas já se foi, sem ainda se desprender do Todo, em Enclausurado temos o exato fenômeno às avessas: um espermatozoide a caminho de virar gente, e que ainda nem se vestiu para participar desse desfile em pleno século XXI. Em suas palavras mora a descoberta do Todo, do teatro do desconhecido, tal um Cristóvão Colombo embrionário defronte ao Novo.
O distanciamento de Ian McEwan quanto ao mundo que observa e decifra (enquanto feto) é genial, oposto portanto ao espírito de Cubas, analisando tudo o que já viveu no outro lado da existência. Neste caso, tudo ainda está para ser experimentado, mas o autor de Serena jamais opta pelo encanto virginal óbvio que poderíamos esperar. Com uma narração em primeira pessoa memorável, o próprio feto verbaliza, questiona e julga impunemente a lógica do mundo dos adultos e da sua família de intrigas usando de um sarcasmo visceral, enquanto brinca com o seu cordão umbilical, ouve qualquer suspiro que vem de fora e começa a entender que um plano para matar John, o seu pai, começa a ser arquitetado, já no final da gestação, pelo próprio corpo que o aloja, e pelo amante inescrupuloso da mãe, Claude. Como ele poderá salvar John, ou no mínimo, se vingar de um crime à beira de acontecer?
As influências conceituais de William Shakespeare aqui são tão nítidas quanto o sol do meio-dia. Uma trama de traição e assassinato se desenrola para a agonia do filho do homem-alvo, ligado agora íntima e criticamente à sua progenitora. Antes mesmo de estrear, esse aprendiz ainda não-nascido de Hamlet já é chamado para o despertar da responsabilidade e, assim, ao conhecer a falta de limites de algumas pessoas, averiguar o mundo que está prestes a recebê-lo, sem poupar nada nem ninguém de suas reflexões de marujo de primeira viagem. Enclausurado, da editora Companhia das Letras, é desde o início uma típica obra divertida e rápida de se ler, num jogo absolutamente hipnótico de palavras a darem cabo de questões filosóficas, e um juízo existencialista que todos nós, cedo ou tarde, superficialmente ou não, acabamos deparando-nos ao longo da vida. O desespero fica sendo opcional; a realidade, não.
O grande fôlego do livro e a sua franqueza muitas vezes irônica acerca do mundano, e os absurdos e contradições da mente e das relações humanas, tornam o romance de McEwan um dos mais criativos exemplares da capacidade argumentativa do seu autor; quiçá o melhor desde A Reparação. Sua sensibilidade choca em momentos de pura catarse observacional, e a sensação é de investigarmos junto do feto-narrador um mundo de fantasia pelo buraco da fechadura, levando em conta que habitamos essa fantasia. O corriqueiro para nós é o assombro misterioso a quem chegou agora e, por isso, olha assustado na janela. McEwan edifica, em poucas páginas, uma visão brutalmente crítica e extraordinariamente coerente de ser parte de uma sociedade complexa, e de como podemos reagir da melhor forma possível a suas circunstâncias sistemáticas a partir dos nossos próprios valores – naturais, ou não. Livraço.
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