“[…] Deus não nos escolheu.”
E a religião depois do apocalipse? Ainda vale acreditar em salvação se você ficou pra trás? Aparentemente, o popular lema do Chapolim Colorado, célebre criação de Roberto Gómez Bolaños, vive uma crise de fé no dia seguinte ao arrebatamento individual – e em Y – O Último Homem, isso não poderia ser diferente. Sob a premissa do único representante masculino vivendo em meio a bilhões de mulheres, crenças antigas (católicas, muçulmanas) parecem estar ultrapassadas agora, com um simbolismo contestado pela revolta e a confusão das pessoas. Em tempos assim, o sagrado perde o peso e cede brilho ao ceticismo, ao carma, uma vez que o inferno está na Terra e não há mais nada para nos salvar de nós mesmos. Neste terceiro volume da saga, Deus está morto dentro ou fora da igreja. Sobrou a sobrevivência e, se bobear, a barbárie.
É curioso como a publicação da Panini trata o fatalismo, no geral, como combustível para valorizar a vida, e as relações humanas. Agora que todos finalmente chegaram ao laboratório da Dr. Mann, para tentar encontrar a cura a extinção dos homens (não como raça, e sim o gênero), nada é mais precioso que as amizades e os laços das pessoas. Yorick, o último, já fala com Mann e a agente 355, designada pelo governo dos EUA para protegê-lo, como se os três fossem irmãos. Graças ao talento e ao timing criativo de Brian K. Vaughan, essa evolução das personagens é muito bem-sucedida na série, sempre apostando no drama e na ação para pautar a naturalidade das histórias, e manter o ritmo narrativo hipnotizante em O Anel da Verdade. Aqui, ficamos sabendo que pode ter sido um reles anel de mágico que Yorick usava pendurado no pescoço que pode ter evitado a sua morte, por alguma razão desconhecida, até que o seu macaco de estimação, Ampe, parece ser a chave real da preciosa imunidade dele.
Sem limitar-se a provocações blasfêmicas, ou a explicações baratas que poderiam desmistificar os mistérios principais de Y – O Último Homem, esse acordo extermina qualquer noção de conforto na trama, e atira Yorick e suas grandes amigas numa perseguição para recuperar Ampe, pois outros já haviam descoberto o valor do macaquinho bem antes deles. Apesar do leve excesso de páginas que apresenta, O Anel da Verdade é o ponto de virada necessária na saga, bem antes de Menina com Menina, em que nossos “heróis” (várias aspas, por favor) se veem como forasteiros num navio rumo ao Japão, rumo ao salvador primata – por mais que ele não seja visto com essa aura imaculada, seja porque as religiões ficaram inúteis, ou porque é difícil enxergar o sagrado num animal que atira cocô em qualquer um, exceto no dono, Yorick. Questões como traição, memórias afetivas e, finalmente, lesbianismo são ilustradas com exuberância nos traços realistas de Pia Guerra, o que resulta em belos painéis coloridos e ótimas cenas – as lembranças de Yorick com sua eterna ex-namorada, Beth. Viva, talvez? Mas aonde?
De frágil, o amor de verdade não tem nada. E essa, por incrível que pareça, é a mensagem mais forte da série.