Robert Zemeckis há muito tempo abandonou a direção de filmes live-action para trabalhar com animações, tendo um papel fundamental na evolução de técnicas como a captura de movimento, como visto em seus últimos trabalhos – O Expresso Polar, A Lenda de Beowulf e Os Fantasmas de Scrooge. Contudo, essa escolha o deixou bem pouco presente na grande mídia. Doze anos depois de Náufrago – último live-action do diretor -, Zemeckis retorna de onde parou e entrega um grande filme.
O Voo conta a história de Whip Whitaker (Denzel Washington), um talentoso piloto de aviões comerciais, alcoólatra e usuário de drogas. A história se desenvolve como numa manhã qualquer na vida desse piloto. Whip acorda num quarto de hotel, acompanhado de uma de suas comissárias de bordo, ainda sob efeito de álcool da noite anterior, cheira cocaína para cortar o efeito da bebida e parte para mais um dia de trabalho rotineiro. No entanto, após uma falha técnica em sua aeronave, Whip é obrigado a realizar um pouso forçado de forma pouco usual e acaba salvando a vida de boa parte dos passageiros: 96 dos 102 que estavam a bordo sobrevivem.
Após salvar praticamente toda a tripulação da morte iminente, Whip é celebrado como herói. Contudo, sua vida começa a sair do controle quando descobre que a FAA (Federal Aviation Administration) está realizando uma investigação e que exames de sangue já foram coletados comprovando o consumo de álcool e drogas antes de o avião decolar, fato que poderia comprometer toda sua carreira e colocá-lo na prisão.
Com os aspectos centrais da trama colocados em seus devidos lugares, Zemeckis desenvolve sua narrativa, tirando o foco do acontecimento alimentado de modo sensacionalista pela mídia para acompanhar os dilemas éticos de seu protagonista. Whip é autodestrutivo, afastando todos ao seu redor, sua família, amigos e até mesmo seu novo laço afetivo, Nicole (Kelly Reilly), uma ex-viciada.
O grande mérito do filme é não escolher lados em seus temas, e este é também um de seus maiores problemas. O Voo deixa claro que seu protagonista é um alcoólatra funcional, sugerindo que talvez ele mesmo não tivesse realizado o pouso de forma tão eficaz se não estivesse sob efeitos de álcool e outras drogas. Essa figura questionável não o isenta de suas responsabilidades, assim como também não o redime. Contudo, em seu desfecho só soa extremamente moralista e melodramático, jogando fora boa parte da narrativa que havia construído até então para se tornar um dos contos de superação que inundam Hollywood ano após ano.
A composição de personagem de Denzel Washington é um show à parte. Pouco a pouco se vê na tela a decadência de um homem sem horizonte, que tenta em vão vencer seus vícios em uma interpretação minuciosa, que foge da obviedade de seus papéis anteriores. Os trejeitos e olhares com os quais o personagem pede uma bebida em dado momento do filme imprimem o quão frágil seu personagem é, numa atuação intensa que demonstra toda sua angústia através de pequenos gestos corporais de suas mãos e boca, assim como sua confiança parece retornar após tomar o líquido tão esperado ou inalar cocaína, se tornando novamente o sujeito arrogante e cheio de si. O elenco coajuvante é interessante, principalmente as participações de John Goodman e Don Cheadle, trazendo debates ou cenas interessantes para a trama; no entanto, a personagem de Reilly parece ter saído de não sei onde para ir para lugar algum, tamanha a importância e a forma abrupta com a qual é utilizada.
O Voo, apesar de extremamente didático em seu desfecho, traz uma das melhores performances de Denzel Washington nos últimos anos, além de trazer o retorno de Zemeckis na direção live-action. Uma pena pecar em ousadia.
Parabéns pelo texto. Assisti a esse filme em sua pré-estreia em minha cidade e concordo com muito do que você escreveu. Ótima crítica. Anda tomando aulas com “o mestre”, não é? 🙂
o filmes de tribunal são em sua maioria bons mas pecam sempre no final
Não acho que ter sido didático no final seja um pecado, uma falha. Se tivesse sido o contrário, teria tido opiniões diversas também. Acho que mostrou que ele lutou e depois de tudo, não conseguiu colocar a culpa na mulher que ele estava se relacionando, por se importar demais com ela. Ele reconheceu o próprio erro, assumiu a falha, por mais difícil que fosse, e no fim de tudo, o filho lhe faz uma pergunta que ele mesmo não consegue responder: Quem sou eu?
Ótimo texto. Meus parabéns.