Poeta desde a década de setenta, o pseudônimo de Glauco Mattoso vem da doença degenerativa do nervo ótico que, em 1995, lhe deixou completamente cego. Escritor profícuo de poemas, em destaque para sonetos que revelam seu apuro técnico, Mattoso sempre foi considerado um poeta marginal pela temática erótica e fetichista, publicando seus contos e poesias em pequenas editoras.
Com sessenta anos completados em 2011, uma quantidade invejável de sonetos – mais de dois mil – a obra do poeta vem sendo reconsiderada, perdendo a postura moralista de outrora e galgando-o ao merecido posto de destaque de grande poeta contemporâneo. Em comemoração ao seu sexagenário, o selo Tordesilhas, da Editora Alaúde, lança Tripé do Tripúdio e outros contos hediondos, um inédito que dá inicio a republicação da obra do autor.
Tripe do Tripúdio e outros contos hediondos dá sequência lógica a obra de Mattoso, ao mesmo tempo que remete-se a lírica escrita anteriormente. Debruçando-se sobre os próprio sonetos, o autor recria as histórias que foram a fonte de inspiração, como uma espécia de desconstrução da própria obra artística.
Embora os sonetos mencionados não estejam disponíveis no volume, a maioria pode ser encontrada online e lida em simultâneo a esta obra. A cada conto, o autor resgata da memória o elemento que foi responsável pela composição de seus sonetos, equilibrando-se no desenrolar memorialístico e na linguagem oral, valendo-se em muitas narrativas do diálogo direto com outros amigos personagens, dando maior vivacidade a história, como se o público parecesse inserido nela.
Na temática, Mattoso sempre quebra a parede íntima das personagens, apresentando ao leitor histórias de sexualidade e seu explícito fetiche por pés que sempre deixa o autor – ao menos como personagem – imaginando formatos, tamanhos e odores.
Em uma primeira leitura, a prosa causa estranhamento nos leitores. Mattoso escreve sobre um universo sexual de maneira natural, não traduzindo qualquer orientação ou fetiche como um tabu, mas sim como uma faceta existente dentro de nossa complexidade. Explora taras, fetiches, desejos, sem nunca tratá-los como excludentes ou marginalizados.
Os vinte e cinco contos desta coletânea perpassam um longo período de sua carreira, desde a época em que ainda enxergava, contemplando visualmente os pés que passavam ao seu redor, até a perda completa da visão, em que vale-se da descrição de amigos e de próprio tato para saboreá-los.
Não há pudor que substitua a imagética de suas cenas, criadas a partir de uma prosa bem elaborada, apoiada no estilo narrativo da crônica, que podem envergonhar leitores mais pudicos. A linguagem é limpa, sem rebuscamento e repleta de riqueza narrativa.
Podólotra assumido e simpatizante de outros fetiches, há quem possa observar uma repetição temática constante nos vinte e cinco contos. Histórias de descobertas sexuais na infância, personagens vingativos que fazem do desejo objeto de rebaixamento, e outras histórias de um narrador que parece contá-las a um amigo íntimo, sem rodeios.
Mesmo versando sobre um mesmo tema, a pluralidade de seu talento é evidente, explorando com genuína naturalidade o lado obscuro da sexualidade sem cair na polêmica ou evitar uma história pelo tabu.
Lançado em capa dura com uma sobrecapa que destaca uma pintura de Magritte, o livro ainda conta com um bom posfácio de Antonio Vicente Pietroforte, que insere o poeta na história de nossa poesia, com seu estilo peculiar.