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  • Resenha | Melodia do Mal – John Ajvide Lindqvist

    Resenha | Melodia do Mal – John Ajvide Lindqvist

    Melodia do Mal (Tordesilhas), do sueco John Ajvide Lindqvist, é um thriller sobrenatural que, em longo prazo, se propõe a investigar o desenvolvimento da empatia nas pessoas e quais comportamentos ou emoções seriam mais características dos seres humanos. Tudo isso por conta de Theres, a protagonista da história, uma menina que, fora a aparência, não sabe muito sobre como ser humana, para dizer o mínimo.

    A história começa com o músico fracassado Lennart Cederström encontrando uma menina dentro de um saco na floresta. Ela foi deixada para morrer em uma pequena cova e Cederström a encontrou quando, na verdade, procurava cogumelos. Aliás, ele só a acolhe por conta de ela cantar divinamente, algo que ecoa como o mito grego de Orpheu. Esse poder sobrenatural da música faz com que ele a leve para casa e resolva não comunicar às autoridades, mas mantê-la como uma filha escondida no porão. O filho do músico, Jerry, quando descobre, tem ciúmes da Pequenina, e vamos descobrindo o quando essa família é fragmentada.

    O casamento de Cederström não ia bem e seu filho é um canalha em desenvolvimento pleno. Jerry gosta de extorquir os pais e começa a ser violento com a menina, mas ela não chora, revida com mordidas, e o menino gosta, pois a brutalidade dela é algo que o interessa e excita. Além da violência, Theres têm problemas de empatia; ela parece não sentir carinho ou afeição pelas outras pessoas.É fria, tem a atenção para dentro de si e vai se revelando uma criança sobrenaturalmente perturbada, algo como um ser desconhecido vestindo uma fantasia de humana (Donnie Darko feelings).

    Logo chegamos ao primeiro ponto de virada do livro, Theres mata seus pais postiços e o livro ganha uma névoa constante de violência em qualquer situação. A sensação é justamente essa: uma menina sem pudores quanto à morte, porque como ela não se vê parte da humanidade, Theres encara uma predadora da espécie humana. Além do mais, para a menina, os humanos, ao morrer, deixam uma “fumaça” que ela pode respirar após a morte para preencher o vazio dentro de si.

    Um livro complexo, sem dúvidas, que tenta investigar a maldade e a construção da empatia humana. Todos os personagens têm uma atmosfera de desajuste, de violência física ou sexual ou de simplesmente não ligar para os outros. É uma investigação sobre a humanidade com alguns dos piores exemplares possíveis de pessoas. Continuamos a leitura por conta disso, talvez.“Melodia do mal” tem quase 500 páginas, uma dezena de personagens, arcos complexos e carrega uma névoa tarantinesca sobre si.

    O estilo de Lindqvist é conciso, detalhista e acolhe muitas referências atuais e mitológicas, o que torna a narrativa ainda mais palpável e assustadora. Leitura para dormir com aquele frio na espinha.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Melodia do Mal – John Ajvide Lindqvist.

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  • Resenha | Tango, com Violino – Eduardo Alves da Costa

    Resenha | Tango, com Violino – Eduardo Alves da Costa

    Tango, com Violino descreve o dia a dia de Abeliano, um professor de história da arte aposentado que envelheceu “ex abrupto, no momento em que se deu conta de que poderia viajar gratuitamente nos ônibus municipais”. A partir daí ele desenvolve o hábito de andar ao acaso nos coletivos da cidade, na esperança de que seu itinerário lhe revele algo inusitado. Desse modo, acaba por transformar a banalidade cotidiana em uma série de aventuras que atribuem importância a cada contato humano, a cada paisagem urbana. Alimentando-se do que vê e do que ouve, em todo ônibus que entra Abeliano vive um universo possível e fugaz, que se desfaz a cada fim de viagem para ressurgir na próxima, o que lhe possibilita “adiar o mergulho no isolamento irremediável e definitivo”.

    Elogiado por Antônio Houaiss, que afirmou que sua escrita é “diabalmente aliciente”, o autor nesta obra – diferente do juvenil Memórias de um Assoviador – aborda o universo da terceira idade. O protagonista, Abeliano, com 76 anos, começa contando suas memórias. Aposentado, não sabe muito bem o que fazer com tanto tempo livre. Até que descobre as vantagens de ser velho. E a melhor delas é desfrutar da gratuidade do transporte público. Essa descoberta quebra sua rotina, acabando com o tédio.

    Diferente de outras obras sobre essa fase da vida, Tango, com Violino não foca na idade, na aposentadoria, nas doenças, enfim, na velhice em si. A partir de sua “descoberta”, ele sai todos os dias passeando por São Paulo, conhecendo lugares e conversando com pessoas. E conversa com os mais variados tipos, sobre os mais variados assuntos: política, arte, filosofia, o sentido da vida. Ouve causos, confissões, o que quer que tenham a dizer ao encontrarem nele um bom ouvinte. Ocasionalmente, sai para passear “disfarçado”, com a ajuda de seu amigo Theo, que trabalha em uma loja de fantasias. E não hesita em envolvê-lo em suas brincadeiras, aproveitando-se da timidez do amigo.

    “Será que você ainda não percebeu que neste país um sujeito com mais de sessenta anos adquire o dom da invisibilidade?! Você pode andar pela rua, entrar numa repartição pública, ir ao baile, almoçar no restaurante, de peruca, sem peruca ou com uma peruca de duas cores, metade ruiva, metade morena, vestido de odalisca ou pelado, que ninguém, estou dizendo, absolutamente ninguém vai botar os olhos na sua insignificante e envelhecida pessoa! Para gente como nós, meu caro, acta est fabula, a representação terminou!”

    A narrativa em terceira pessoa tenta – no meu entender, de forma pouco eficiente – emular Saramago, com diálogos sem marcações. Protagonista, personagens, perguntas, respostas, tudo junto e misturado, prejudicando a fluidez da leitura. Não é apenas uma questão de habituar-se a esse formato narrativo, como nos livros de Saramago, em que bastam algumas páginas para a leitura encontrar seu ritmo e fluir agradavelmente. A voz dos personagens se misturando à voz dos demais personagens exigem atenção redobrada, o que acaba tornando a leitura cansativa, apesar de a trama ser interessante.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

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  • Resenha | O Mal de Lázaro – Krishna Monteiro

    Resenha | O Mal de Lázaro – Krishna Monteiro

    Com mais de 5 bilhões de cópias vendidas e distribuídas no mundo, a Bíblia se mantém como o livro mais vendido do mundo. A coleção de textos sagrados se mantém como um livro querido por seus devotos, bem como presentes nas livrarias em diversas edições, dedicadas tanto para leitura diária como para estudos. Demonstrando que, independente do motivo, trata-se de um livro com alto número de leituras.

    A partir de dois personagens bíblicos, o autor Krishna Monteiro desenvolve a narrativa de O Mal de Lázaro. Lançado pela Tordesilhas, que anteriormente lançou do autor o bom livro de contos O Que Não Existe Mais (indicado ao 58º Jabuti na categoria Contos em 2016), a obra traça uma evidente parábola sintetizando dois personagens das escrituras: São Lázaro de Betânea e São Lázaro, O Leproso. Não à toa, o título remete a um dos nomes pelo qual a lepra foi conhecida em séculos passados.

    Divida em três partes, a narrativa tem como mote o poema A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Uma lírica contrapondo a grandeza divina da fragilidade humana. Forte citação e coerente com a trama que apresenta uma narradora misteriosa que passa a seguir um homem, a quem batiza por Lázaro. Embora o narrador esteja presente nas cenas, é quase um personagem-observador, dando-nos a impressão de que, embora acompanhe Lázaro ativamente ou esteja em seu convívio, é um observador silencioso de um homem solitário.

    As lacunas escolhidas para a narradora servem para universalizar a história, garantindo seu tom fabular. Não se sabe, ao certo, quando a história aconteceu. As descrições apresentadas explicitam somente uma cidade simples de pessoas comuns e trabalhadoras. Nesse universo que o drama de Lázaro se enfoca apresentando como ele se vê e como a cidade o percebe.

    Mantendo um rigor técnico como na obra anterior, o romance cresce em densidade. Monteiro desenvolve com grande qualidade cada um de seus capítulos, dilapidando o espaço temporal, mantendo um bom ritmo lento em cada movimento da trama, transmitindo ao leitor a sensação de se sentir inserido neste universo pacato. Diante de muitos narradores contemporâneos que buscam cortes narrativos a procura de cenas rápidas, o autor escolheu manter o fluxo narrativo com calma, em um ritmo brando mais denso.

    O diálogo com os personagens bíblicos é explicito, fazendo com que até mesmo o próprio narrador pontue essa observação. Mencionando como a roda da história mistura pessoas e fatos, agrupando-as em uma única linha temporal. O Lázaro do livro ganha esse nome pelas semelhanças com os personagens bíblicos ao mesmo tempo em que os representa, relendo a trajetória do leproso que após uma vida de percalços encontra abrigo ao lado do Senhor e o outro Lazaro de Betânea, ressucitado por Jesus.

    Aos poucos, a Máquina do Mundo, como menciona Drummond, se conjuga na vida da personagem. Se o conceito divino é pautado como algo perfeito, sua contraparte humana é carregada de vícios. Dessa forma, é a própria sociedade que cerca o personagem que o julga, ora acolhendo-o, ora desprezando-o. Promovendo a reflexão no leitor por uma narrativa bem desenvolvida a partir de dramas humanos.

    O Mal de Lázaro é mais um consistente passo na carreira de Krishna Monteiro. Um romance breve mas denso, trabalhando a mesma tônica de sua obra anterior, voltada a analisar as lacunas da existência.

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  • Resenha | A Santa Aliança – A. J. Kazinski

    Resenha | A Santa Aliança – A. J. Kazinski

    Teorias da conspiração sempre se transformam em um rico tecido especulativo cujo objetivo é desconstruir ou reformular a história oficial de um evento. Acrescentando elementos de intriga e movimentos secretos com poucos envolvidos, motivo pelo qual sempre se torna um tema curioso e um assunto passível de discussão. Quando inserimos a literatura dentro desse conceito, observamos que diversos thrillers partem de uma espécie de suspense conspiratório para atrair o público e desenvolver sua tensão, mistérios fundamentais para produzir uma boa história.

    O gênero foi impulsionado desde o lançamento de O Código Da Vinci, em 2003. O maior sucesso de Dan Brown não trouxe apenas as teorias conspiratórias em cena como inspirou diversos outros produtos que utilizavam a intriga com inferências do passado como mote. Histórias curiosas que, nem sempre, mantinham-se na qualidade, afinal, o que estrutura uma boa narrativa do gênero é a capacidade de equilíbrio entre a ficção e a base histórica que ganha um novo sentido na trama.

    Reforçando tal afirmativa, os roteiristas Rønnow Klarlund e Jacob Weinreich, retornam ao pseudônimo A. J. Kazinski para mais um bom thriller, dessa vez, valendo-se da potência de uma conspiração. Lançado pela Tordesilhas, A Santa Aliança é o terceiro livro da dupla (os anteriores foram O Último Homem Bom e O Sono e a Morte). A trama acompanha a jovem jornalista Eva Katz se readaptando na vida após a perda do namorado, um soldado no Afeganistão, e um emprego como repórter. Inserida na reabilitação de trabalho da Dinamarca, é realocada para trabalhar em uma creche e, em seu primeiro dia, impressiona-se com um desenho infantil sobre um assassinato e começa a investigá-lo, descobrindo uma história que envolve uma rede de segredos de grupos poderosos na sociedade dinamarquesa.

    A narrativa trabalha com qualidade os clichês de uma história de suspense e as bases do gênero policial, colocando sempre a investigação em contraposição com os homens que tentam detê-la. Embora a personagem seja uma jornalista, é o faro pela verdade, um senso que jornalistas e detetives ficcionais têm em comum, o elemento que propulsiona a história. Porém, o grande mérito da obra é a capacidade de desenvolver a psicologia das personagem a um ponto crível, além do mistério. Um fator que justifica com maior ênfase o porquê a jornalista se vê obcecada em descobrir os fatos. As perdas anteriores de sua vida, como a traumática morte do marido, são retratadas de maneira franca em lembranças que evocam a beleza da memória e, ao mesmo tempo, a dor de alguém que, ainda, não superou o passado. Não a toa, a personagem se agarra na investigação como um momento lúcido em sua vida. Tal efeito, a profundidade psicológica de Katz, envolve o leitor além do mistério, estabelecendo um reconhecimento diante de alguém que passou por difíceis momentos traumático.

    O bom background da personagem se equilibra com a inserção da realidade em uma conspiração que remonta desde a fundação da Santa Aliança, coligação criada no Século XIV pelas potências monárquicas da Europa. Um momento histórico com potencial para desenvolver intrigas entre governos, mantendo a credibilidade da narrativa sem o excesso de distorções históricas como Brown faz para inserir mensagens implícitas em objetos de arte e documentos diversos em suas narrativas com o professor Robert Langdon.

    Como a trama se passa em um breve período, dividido entre as ações diárias de cada personagem, a ação é composta de maneira rápida, encadeando descobertas da jornalista e ações do grupo que tenta parar a investigação a todo custo. Alternando o ponto de vista entre ela e o grupo citado, a tensão se amplia, sem nunca perder o foco.

    Bem desenvolvido como um thriller explorando o tema sempre curioso das conspirações, A Santa Aliança é uma boa narrativa do gênero, pautada, principalmente, nas bases do entretenimento para compor um produto de leitura rápida e intensa aventura. Diante de muitas obras com temas semelhantes, a dupla Kazinski sabe compor um bom material e conduzir o leitor ávido em resolver o mistério.

    Compre: A Santa Aliança – A. J. Kazinski

  • Resenha | Arco de Virar Réu – Antonio Cestaro

    Resenha | Arco de Virar Réu – Antonio Cestaro

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    “Você vive dentro da sua cabeça. Você não vive no mundo.”

    Primeiro romance de Antonio Cestaro – que já tem publicados dois livros de crônicas: Uma Porta para um Quarto Escuro e As Artimanhas de Napoleão e Outras Batalhas Cotidianas – o livro conta a história de um historiador social, cujo principal interesse é o estudo antropológico de sociedades indígenas, seus rituais e costumes. Narrado em primeira pessoa, o livro conta a história de um homem de meia-idade, primogênito de uma família de pais separados. Família que, como tantas outras, tem seus problemas: a ausência do pai, a fragilização da mãe, a esquizofrenia do irmão mais novo, Pedro.

    A doença mental de Pedro se manifesta na adolescência, quando se inicia um descolamento da realidade e ele passa a vivenciar uma guerra imaginária particular. O narrador tenta de alguma forma encontrar sentido nesses delírios, enquanto seu primo, Juca Bala, quer se valer dessas histórias para fazer um filme. Esse mergulho na loucura do irmão desencadeia no narrador pesadelos recorrentes envolvendo rituais indígenas que se mesclam às narrativas de cunho militar de Pedro. A sanidade do narrador vai se esvaindo aos poucos, até ele próprio descobrir-se doente.

    “Voltando alguns anos no tempo, concluo que foi um engano pensar que a Carolina me acompanharia destemida por qualquer caminho. Há uma ponte entre a fé e a razão que a Carolina, mesmo com a sua formação em ciências humanas, não estava disposta a transpor. Todo o meu esforço para entender além da matéria e do instinto primário da vida ia ruindo com o conhecimento da complexidade das sinapses e seus caminhos sulcados, que tornam a transgressão uma recorrência obsessiva. Por vezes seguia sem o juízo da censura pelos pensamento que seriam do Pedro, e o impacto de antes já não me abalava. Sentia-me só novamente.”
    (p.48)

    A imprecisão (proposital) da narrativa faz o leitor embarcar nas alucinações do narrador, sem saber – assim como ele – onde termina a realidade e começa o delírio. O narrador, pouco confiável devido ao avanço da doença, carrega o leitor consigo em sua tentativa de descrever e entender o que ocorre a seu redor. Faltam coerência e sentido a alguns fatos da trama. A economia de detalhes faz o leitor se perguntar se o narrador está omitindo os fatos deliberadamente ou se é apenas mais um sintoma de seu estado mental, que o faz focar cada vez mais nos seus sonhos em detrimento da realidade.

    A doença do narrador põe em xeque inclusive a existência de alguns personagens – Juca Bala, a Carolina (sua esposa) e dr. Da Veiga existem mesmo ou serão invenções de sua cabeça?

    “Apesar de não saber ao certo em que tempo e circunstância mudei para dentro da cabeça, depois de resistir e tentar outros entendimento, tive que aceitar que tenho passado a maior parte da vida na cabeça, onde prazeres, afeição e coragem se misturam com ódio, vergonha e medo. E, de acordo com o dr. Da Veiga, um medo que se instala na cabeça com propósito de moradia não é medo normal, é medo complexo, que passa a existir independentemente da influência de qualquer elemento causador.”
    (p.112)

    O trabalho com a linguagem é primoroso, resultando numa narrativa ágil e envolvente que leva o leitor a questionar, junto com o personagem, quais os limites entre sanidade e loucura.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | O Que Não Existe Mais – Krishna Monteiro

    Resenha | O Que Não Existe Mais – Krishna Monteiro

    O Que não existe mais - Krishna Monteiro - capa

    Como narrativa de menor fôlego em comparação a um romance, a análise de um conto pode se tornar delicada quando há a necessidade de inseri-lo em um contexto maior através de uma obra literária. O conto atrai o leitor de maneira diversa a de uma narrativa longa e, devido a necessidade de um mesmo livro conter contos diversos, a análise de uma obra de contos pode ser mais difícil devido a unidade temática. Como diversas leituras distintas se apresentam em um mesmo livro, cabe ao leitor se preparar para diferentes narrativas para absorvê-las em totalidade. De qualquer maneira, há grandes livros de contos que não atingem seu ápice completo devido a oscilação de qualidade interna.

    A unicidade narrativa é um dos destaques de O Que Não Existe Mais, primeiro livro de contos do jornalista e diplomata Krishna Monteiro, lançado pela Tordesilhas no início do ano passado. Formado por sete narrativas breves, o livro tem prefácio assinado pela crítica Noemi Joffe, a qual desenvolve uma linha temática semelhante ao tema que abarca a obra.

    É um tempo anterior e passado a referência primordial que atravessa a composição poética das narrativas. Exceto por um dos contos, todos se iniciam com uma citação, desenvolvendo um preâmbulo da história a ser lida. A narrativa de Monteiro é fluída e bem composta, movimentada por gatilhos emocionais que atingem o leitor pela sensibilidade. No conto de abertura, cujo nome é homônimo ao livro, é a memória a base para o diálogo entre um filho e um pai morto. Lembranças suficientemente fortes para recompor a trajetória do pai pelo tecido memorialístico. Em linguagem formal que mantém a segunda pessoa de tratamento, a qual demonstra o respeito do filho pelo pai, a ausência invade a narrativa.

    A literatura é homenagem em As encruzilhadas do Doutor Rosa, celebrando a prosa do grande Guimarães Rosa em uma jornada labiríntica que demonstra a própria jornada da leitura do autor se envolvendo com a obra do mineiro. Tanto em Quando dormires, cantarei e Um âmbito cerrado como um sonho, as vozes narrativas são o principal elemento de impacto no leitor. O texto esconde suas intenções primordiais, eclodindo ao final quando são reveladas, bem como as personagens que as narram. Papéis que situam um momento anterior de existência que, a qual confirma o título, não existe mais.

    A matéria do passado e memória nem sempre traduz boas lembranças, caso de Monte Castelo, o conto mais extenso e denso da seleção. Dividido em partes, a história transita entre a narrativa de um neto sobre o avô – e sua participação na guerra – e o conflito interno familiar entre mãe e filha. A trama sobrepõe duas memórias sensíveis, avô e neto, novamente edificando laços sanguíneos. Assim como momento anterior nem sempre é erigido sobre uma ausência trágica, em O Sudário é a eminencia da violência que configura o fim.

    O conto que encerra a obra, Alma em corpo atravessada, versa sobre o próprio ofício literário em uma metalinguagem que apresenta uma contadora de histórias orais e as ondulações invisíveis de realidade e ficção dentro de uma narrativa, situada como uma arte e um fardo simultaneamente. Todas os sete contos em suas frontes distintas de trama e personagens dialogam com uma temática maior, conduzindo a obra a um significado distinto.

    Com intimidade diante das palavras em boa prosa desenvolvida com precisão, O Que Não Existe Mais de Krishna Monteiro é um bonito e melancólico mosaico narrativo de momentos anteriores, inseridos entre um passado nostálgico e  lembranças amargas.

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    Krishna Monteiro

  • Resenha | A Pianista – Elfriede Jelinek

    Resenha | A Pianista – Elfriede Jelinek

    A Pianista - Elfriede Jeline

    Erika Kohut tem 36 anos e vive em um pequeno apartamento com sua mãe idosa. Apesar de ter sido preparada toda a vida para se tornar uma grande concertista, não se destacou o bastante na música e passou a trabalhar como professora de piano em um conservatório. A mãe, única figura de autoridade, considera a causa desse fracasso a vaidade de Erika e procura através de uma existência austera lapidar a filha para sublimar essa falha.

    O motor da história em A Pianista, escrito pela vencedora do Nobel Elfriede Jelinek, é a violência, não a violência óbvia e demasiadamente retratada em outros meios, mas a sutil e destruidora violência psicológica que movem nossas relações sociais. A mãe nem mesmo permite a Erika mínimas escolhas do cotidiano, proibindo-a de usar os vestidos que compra em pequenas rebeldias. Todo o dinheiro da casa é controlado pela mãe sob a promessa de proporcionar as duas um apartamento maior. No espaço em que convivem, a mãe cede espaço em sua própria cama para Érika, pois o quarto dessas não é mais que um mero depósito, sem trancas..

    Porém, se dentro de casa Erika é extremamente submissa, em seu trabalho ela é a figura de autoridade. A professora é sobretudo rígida com seus alunos e esconde sua crueldade atrás da intenção de aprimoramento técnico. a personagem acredita que se a professora tão superior em conhecimentos não conseguiu alcançar o estrelato, nenhum daqueles que a procuram como mestra o merecem. Pequenas crueldades pautam o seu dia a dia, apoiada na crença que sua educação artística a faz superior e o incômodo de conviver com o populacho lhe delega o direito de ferir.

    Suas ilusões a respeito de sua superioridade contrastam com seus hábitos autodestrutivos. Na ânsia de sentir, Erika se fere, e se coloca constantemente em perigo. Anda por lugares ermos, frequenta cabines de shows eróticos onde reconhece o perigo de ser violentada. Desenvolve gosto por observar casais fazendo sexo em lugares públicos. Sob a fachada de mulher respeitada, esconde um desejo pela degradação.

    A tão almejada degradação encontra Erika quando um de seus alunos desafia-se a seduzi-la. O esforçado Walter Klemmer está ciente de que sua professora está no crepúsculo de sua juventude, e a considera uma presa fácil, uma escolha inteligente para uma relação passageira. À medida que a professora oferece alguma resistência, o orgulho de Klemmer faz com que ele haja como um apaixonado.

    A narração em terceira pessoa nos dá uma visão total do que pensam e sentem esses três personagens, e de quais são suas motivações. Apesar deste estilo narrativo poder provocar algum distanciamento, a narrativa é demasiadamente subjetiva. Ainda que personagens causem certa ojeriza por conta da intensidade com que  apresentam suas fraquezas e transgressões, seus equívocos forçam uma identificação com o leitor que perdoa as neuroses de cada um dos personagens justificando-as perante o cenário apresentado.

    A Pianista foi publicado em 1983. Porém, a forma como a autora desvela as perversões de seus personagens sem pudores ainda perturba. A história ágil se sustenta principalmente pela força do choque, e em certos momentos pela quebra de nossas expectativas. O livro também conta com uma adaptação para o cinema lançada em 2001 e dirigida por Michael Haneke. No Brasil, o filme fica conhecido como A Professora de Piano, com Isabelle Rupert no papel de Erika Kohut.

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    Elfriede Jelinek

    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

  • Resenha | O Pântano das Borboletas – Federico Axat

    Resenha | O Pântano das Borboletas – Federico Axat

    O Pântano das Borboletas - Federico Axat

    Segundo romance do argentino Federico Axat, O Pântano das Borboletas marca sua estreia no país em edição lançada pela Tordesilhas em 2014. Sucesso em seu país natal e bem recebido pela crítica, o ator é apontado como um misto de Rudyard Kipling e Mark Twain pela boa composição e inventividade narrativa, elogios que intentam demostrar que, mesmo para um romancista de pouca carreira, a prosa é consistente.

    O romance se situa na pequena cidade americana de Carnival Falls, acompanhando um trio de amigos no ano de 1985, época em que tinham 12 anos de idade e compartilharam juntos descobertas e um deslumbramento ainda inocente pelo mundo. A narrativa evoca a memória comum a todos que passaram por esta fase, em uma vertente nostálgica transformadora deste tempo de aprendizado.

    A história se desenvolve tanto nesta fase como dá um salto temporal de 20 anos, momento em que o público percebe que o livro é uma narrativa de memórias de um personagem-autor que retorna a sua infância para narrá-la em um romance. Estes dois espaços temporais se alternam com poucas conexões entre si e elevando o suspense. Axatar domina com perfeição o ritmo narrativo, sabe expor com precisão os acontecimentos, bem como encerrá-los ou desenvolver lacunas necessárias para o desenvolvimento da história. E assim leva o público a muitos acontecimentos que parecem definitivos para desmistificá-los em seguida.

    Como parte da trama se desenvolve na pré-adolescência, a obra flerta com o fantástico e mantém a dúvida se tais acontecimentos, que seriam de difícil aceitação no mundo real, são parte da criatividade da infância ou uma maneira pela qual os jovens retiveram na memória momentos traumáticos, afinal, o tempo transforma a fluidez da memória. As personagens não são poupadas da violência do mundo e de mudanças internas e físicas em si, descobrindo sentimentos universais.

    A sensibilidade é conduzida no interior da história, nos acontecimentos que entrelaçam a amizade e que dão sustentação à amizade do trio, em parte porque o apelo é universal e depende do leitor para a projeção de sua própria infância diante das aventuras das personagens. O autor equilibra pontualmente o lado dramático, conduzindo a história pouco a pouco a cada capítulo, enquanto narra os conflitos dos amigos tanto nesta fase pré-adolescente quanto na adulta, mantendo uma continuidade das histórias pessoais.

    Representante da nova safra de escritores latino-americanos, a estreia de Axat em terras brasileiras é significativa e sua obra merece ser continuada no país. De acordo com o site de seu editor na Argentina, os direitos do novo romance do escritor já possuem editora brasileira.

    Compre: O Pântano das Borboletas – Federico Axat

  • Resenha | De Volta à Caixa de Desejos – Ana Cristina Melo

    Resenha | De Volta à Caixa de Desejos – Ana Cristina Melo

    De Volta à Caixa de Desejos - Ana Cristina Melo

    Se em A Caixa de Desejos, livro que precede esta obra, acompanhamos Marília na transição da infância para a adolescência, em De Volta à Caixa de Desejos, o tema de certa forma se repete, quando, no fim do ensino médio, ela inicia sua passagem para a vida adulta. Marília permanece apaixonada por literatura e, seguindo o conselho de seus pais pensa em prestar vestibular para jornalismo. O momento também é decisivo para Francine, que após o término do casamento de sua mãe tem que decidir se permanece em Paris ou volta para o Brasil.

    Porém, não são só as preocupações com seu futuro profissional que vem tirar o sono de Marília. Quando seus pais começam a se desentender, a protagonista vê o equilíbrio do seu mundo ameaçado. Soma-se a isso um namorado ciumento e a chegada de Joca, um possível novo interesse amoroso, ampliando seus horizontes. São tantos os conflitos que fica impossível não recorrer a sua caixa de desejos, uma maneira de conectar-se também com sua avó Laurinda, de quem sente tanta falta.

    No primeiro livro fui totalmente conquistada pela forma simples e poética em que o luto da protagonista é explorado e em como ela se vê às voltas com os sentimentos e emoções de outras pessoas, enquanto tenta administrar seus próprios medos e frustrações. Apesar da melancolia que percorre a obra, a história é contada de forma leve, e a brevidade dos relatos deixa nas entrelinhas muitos dos sentimentos, o que funciona bem por se tratarem de situações tão universais. Se os detalhes de cada história pessoal são únicos, os anseios e temores do amadurecimento são universais.

    Em sua continuação, a autora mantém o mesmo tom, porém com o universo já estabelecido fica mais fácil desenvolver melhor a história. Apesar da protagonista estar mais velha, a narrativa continua sendo contada para a mesma criança que leu a obra anterior, incluindo os temas da adolescência que parecerão tão adultos para a mesma de forma delicada: paixão, namoro, ciúmes, vestibular, tudo parece envolto em uma certa magia. Ana Cristina Melo acerta em não incluir uma grande lição como cerne de sua história, passeia por temas de interesse para seu leitor, e nos oferece uma deliciosa narrativa mostrando que a maior aventura da vida é crescer.

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    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

  • Resenha | As Artimanhas do Napoleão e Outras Batalhas Cotidianas – Antonio Cestaro

    Resenha | As Artimanhas do Napoleão e Outras Batalhas Cotidianas – Antonio Cestaro

    as artimanhas de napoleao

    Vencedor do Jabuti na categoria Projeto Gráfico, em 2013, o primeiro livro de Antonio Cestaro, Uma Porta Para Um Quarto Escuro, apresentava, em uma linda edição, 20 contos curtos e filosóficos sobre o cotidiano e as lembranças da memória. Dois contos deste livro apresentavam a figura de Napoleão, um porquinho-da-índia que vive em companhia do autor. Motivado pela curiosidade dos leitores, As Artimanhas do Napoleão e outras batalhas cotidianas dá sequência natural às aventuras do personagem, narradas pela observação atenta e poética de Cestaro.

    O livro é dedicado ao poeta Manuel Bandeira, um dos grandiosos de nossa literatura, autor do poema Porquinho-da-Índia, presente no livro Libertinagem. Neste conhecido poema, o eu lírico, com seus oito anos de idade, comenta a respeito de seu bichinho de estimação, cujo local preferido para dormir era embaixo de um fogão. A poética simbólica do animal é a inspiração evocada pelo autor para compor seu Napoleão.

    Formada por 28 contos, a obra repete a parceira do escritor com a filha ilustradora, Amanda R. Cestaro, interpretando em traços a poesia evocada na prosa. São pequenas narrativas que retomam a análise cotidiana, porém dessa vez intermediadas por diálogos silenciosos com o porquinho-da-índia, um observador tão atento quanto o autor.

    O bicho de estimação é o conectivo, ou o ponto de ligação, para as aventuras cotidianas e novas personagens apresentadas em diversos contos. Napoleão mora no pé direito dos sapatos do protagonista, é um dos confidentes da empregada de casa, possui uma amiga vizinha vinda da Espanha e uma namorada que encontra em todas as quintas-feiras. Pessoas que formam um círculo de amizades e são matéria para as divagações e reflexões do autor, que também dialoga sobre a frieza da metrópole e defende o retorno de relações mais próximas entre as pessoas.

    O uso de um carismático personagem animal estimula a multiplicidade narrativa, e traz um novo enfoque para leitores juvenis que, em fase de transição, podem fazer uma leitura da obra tanto pela sua composição lúdica quanto através das mensagens inseridas em cada história.

    Os traços de Amanda R. Cestaro apresentam bonitas representações de cada conto, sempre fugindo de uma mera ilustração direta da obra, para acrescentar mais uma extensão artística, dessa vez visual. Alguns contos são conduzidos por mais de uma ilustração, em páginas que se abrem além da estrutura normal do livro como objeto físico, compondo, como na primeira publicação do escritor, uma bonita edição caracterizada pelo cuidado editorial.

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  • Resenha | Caixa de Desejos – Ana Cristina Melo

    Resenha | Caixa de Desejos – Ana Cristina Melo

    Caixa de Desejos - Ana Cristina Melo

    A carioca Ana Cristina Melo entrega uma história singela nas 95 páginas de Caixa de Desejos,  lançado pelo selo Tordesilhas Jovens Leitores e quarto livro da carreira da escritora. Marília é uma adolescente de 11 anos que tem uma amizade muito especial com sua avó Laurinda. É a partir da iminente morte da avó que sua vida começa a mudar: as pressões na escola parecem maiores, os parentes que habitam sua casa tornam-se cada vez mais inconvenientes, e ainda por cima Marília tem de se adaptar à presença de sua meia-irmã, que chega para dividir o quarto com ela.

    Na trama, a fantasia aparece como um tempero bem dosado, sem extravagância e sem retirar o protagonismo dos dramas familiares e das aventuras rotineiras do crescer. Algo que torna a leitura agradável tanto para o público-alvo do romance como também para aqueles que já passaram da adolescência, evocando nos leitores a nostalgia da infância.

    Apesar de nenhum dos dramas da personagem ser de difícil identificação, e do texto composto em primeira pessoa aproximar o leitor, há uma sensação de suavidade que faz com que os fatos sejam explorados de maneira quase indolor. Enquanto o leitor ainda prepara-se para as emoções do luto, Marília já viveu um primeiro amor e resolveu os conflitos com a meia-irmã e a mãe, tudo com uma rapidez maior do que se poderia supor. Não querendo carregar nas tintas dramáticas, a autora escolheu um caminho ameno que outras histórias para jovens não tiveram receio em demonstrar.

    Ainda assim, a trama é suficientemente boa para deixar os leitores ansiosos pelo próximo livro, que revisita o cenário de Marília: De Volta à Caixa de Desejos, também publicado pelo selo.

    Nascida no Rio de Janeiro, a autora começou a escrever livros infanto-juvenis em 2010 e desde então já publicou Amizade Desenhada (Escrita Fina, 2012), O Banho de Nina (Escrita Fina, 2011) e Uma Turma Para Dora (Vermelho Marinho, 2011). Edita o jornal virtual Sobrecapa Literal.

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    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

  • Resenha | Areia – Wolfgang Herrndorf

    Resenha | Areia – Wolfgang Herrndorf

    O alemão Wolfgang Herrndorf saiu de cena ano passado, aos 48 anos após um diagnóstico de um tumor malígno no cérebro. Não fosse a breve vida cessada, Herrndorf se tornaria um escritor contemporâneo maior do que foi. Sua obra relativamente curta dava arrojados sinais de um talento crescente, ainda rumo à maturidade. Sua obra de seis romances iniciou-se em 2002 e, dois anos depois, conquistava o primeiro prêmio.

    Lançado pela Tordesilhas, Areia é o segundo romance do autor lançado no país, o quinto de sua curta obra. Situado em um país imaginário no Norte da África, em meados da década de 70, a obra do alemão é uma sátira de um país qualquer, em que a desordem e o calor infernal impedem seu desenvolvimento.

    A escolha de um país inexistente produz uma universalidade que permite ao autor tanto criar acontecimentos absurdos quanto, ao criticar lugar nenhum, dialogar com qualquer país que se insira em seu caos particular.

    O local faz parte das personagens da trama como um ambiente opressor que corrói e deforma qualquer boa índole. Transforma uma comuna hippie em um local de chacina; um policial esforçado, capaz de reconhecer impressões digitais, em um homem preguiçoso que tediosamente observa as bolhas de seu café; uma inteligente loira platinada em um objeto sensual; e um homem sem memória em um provável terrorista.

    Com uma narrativa irônica, Hernndorf abusa de um estilo prosódico, próximo da fala, para narrar as peripécias de seu país imaginário. Ciente da condução de sua história, realiza pausas propositadas em diversos acontecimentos simultâneos e ainda ri do leitor – ou pede a ele que avance logo para a próxima página, com uma urgência cúmplice.

    Classificado como um thriller social, Areia permanece entre a possibilidade real de um país absurdo e a realidade absurda de um país. Situado em um lugar quente, em que o sistema de governo é moroso e a pobreza agride a população, é inevitável a comparação deste país de mentira com nosso país tropical. A realidade do leitor brasileiro transforma a leitura em risos mais incômodos pelo fato de identificarmos que os personagens malandros não são uma criação exclusiva de nossa nação.

    A narrativa é dividida em pequenos capítulos, muitos ambientando a cidade para acompanhar a misteriosa loira platinada que vem para o local em busca de salvação e um homem sem memória que tenta descobrir se está ou não envolvido com um roubo misterioso. A dúvida e as intenções das personagens só não são mais estranhas que o meio onde vivem.

    Cada capítulo apresenta uma citação que revela a erudição de Herrndorf em construir uma história pastiche em um mundo inexistente em que personagens vivem sem sentido aparente. Uma comédia de erros permeada por um sol escaldante que escorre na pele de cada personagem e uma paisagem repleta de vazio e areia.

  • Resenha | O Magico de Oz – L. Frank Baum

    Resenha | O Magico de Oz – L. Frank Baum

    O escritor L. Frank Baum teve uma longa carreira até sua morte em 1919. Escreveu mais de vinte romances além de seu universo infantil, surgido em 1900 com o lançamento de O Mágico de Oz e que ainda hoje é considerado o ponto alto de sua literatura.

    Com o lançamento de uma nova produção envolvendo o universo maravilhoso de Oz, o livro retorna às livrarias em edição especial pela Tordesilhas, com tradução de Tiago Novais Lima e ilustrações de Ana Raquel.

    Em um pequeno prefácio, Baum apresenta sua intenção ao realizar a narrativa de O Mágico de Oz. Argumenta sobre a violência das histórias de contos de fada para compor uma história leve, que fosse um escapismo divertido para os leitores em um época de tempos difíceis. Entretanto, a narrativa de Baum não perde de vista tais elementos aterrorizantes. Utiliza-os como desafios a serem transpostos por suas personagens.

    A edição da Tordesilhas apresenta o texto na íntegra e volta-se tanto para leitores iniciantes como adultos. O formato da edição é maior do que o tradicional, escolhido para destacar as ilustrações que, em um tamanho tradicional, poderiam ficar menos expressivas.

    A narrativa é composta por capítulos curtos. Primeiro apresentando as personagens, e o motivo que levou Dorothy a parar em um lugar desconhecido, depois acompanhando cada intempérie do grupo para chegarem a cidade maravilhosa de Oz.

    Dentro deste universo, há um sentido próprio em cada elemento que quebra a ideia habitual, dando espaço para a criatividade do autor e para a imersão de seu leitor nesta mágica jornada transformadora.

    A composição de Oz como um mundo mais acolhedor que o real é explícita desde o primeiro capítulo em que o estado de Kansas é descrito como cinzento e sem vida. Não por acaso, a adaptação cinematográfica foi filmada sem cores neste trecho.

    Em comparação com o clássico de 1936, a trama foi reduzida a sua tensão básica dos cinco amigos que procuram o mágico de Oz para ajudá-los em suas necessidades. A nova adaptação, dirigida por Sam Raimi, embora localizada em período anterior a trama de Dorothy, utiliza-se de diversos elementos presentes no livro mas não em sua adaptação para criar uma nova história.

    Descobrindo tais elementos na narrativa oficial, a nova história que conta como o mágico chegou até a cidade encantada parece ainda mais inútil. Valendo mais debruçar-se nesta divertida narrativa infantil do que considerar a nova produção.

    O sucesso do livro de 1900 foi ponto de partida para que Baum desenvolvesse e ampliasse seu universo mágico. Porém, nunca mais viu o mesmo sucesso que seu primeiro livro. As histórias de Dorothy e companhia até hoje permanecem no público e nas livrarias, já que, após a morte do autor, diversos outros escritores se responsabilizaram para escrever novas aventuras dentro deste novo mundo.

    Talvez seu legado precise ser revisto além da história primordial. De qualquer forma, foi o suficiente para produzir um excelente livro aventureiro que sempre destaca-se nas listas de grandes livros mundiais, além de ter inspirado um incrível musical da Warner / MGM.

    O relançamento da obra em seu original é mais um motivo para que esta sensível história seja redescoberta por um novo público, seja ele ainda jovem ou adulto.

  • Resenha | O Último Homem Bom – A.J. Kazinski

    Resenha | O Último Homem Bom – A.J. Kazinski

    o último homem bom - capa

    Comparado – na própria contracapa do livro – a Dan Brown e Stieg Larsson, o autor (na verdade  dois, que assinam sob o pseudônimo de A.J. Kasinski) consegue surpreender apesar de tudo. Digo “apesar de tudo” pois os autores, Anders Rønnow e Jacob Weinreich, fazem bom uso das marcas registradas daqueles a que são comparados. O texto junta a estruturação dos livros de Brown e a concisão e coesão de Larsson. O resultado é um livro de leitura agradável que foge do clichê e conquista o leitor com uma narrativa ágil e fluida.

    A “receita” usada à exaustão por Brown – homem ligeiramente deslocado do seu meio encontra mulher com habilidades intelectuais acima da média a fim de solucionar um problema – está lá de forma inconfundível. Contudo, o que torna a narrativa instigante é o bom uso que os autores fazem dela. Os personagens são apresentados aos poucos, fazendo o leitor aproximar-se deles e se interessar pelos seus destinos enquanto os acompanha em suas jornadas. O policial italiano Tommaso di Barbara, o detetive dinamarquês Niels Bentzon e a astrofísica Hannah Lund são “palpáveis”, personagens multifacetados que, justamente por não serem rasos, não serem o estereótipo de suas profissões conquistam o leitor pois há, neles, sempre alguma característica com que o leitor se identifique. E quem escreve – e quem lê também – sabe que a identificação é o que pega o leitor pela mão e não o solta até que a trama termine. Pois ao leitor interessa saber como a situação será resolvida, afinal, pensa ele: “Isso poderia estar acontecendo comigo”.

    Essa apresentação dos personagens deixa o início do livro um pouco mais lento do que se esperaria de um thriller e isso talvez afugente alguns leitores. Há também o fato de que os capítulos iniciais narram estórias aparentemente “avulsas”, com pouca relação à trama principal. O leitor demora um pouco até conseguir enxergar as conexões e perceber que, apesar de parecerem gratuitas ou desnecessárias, essas cenas têm relevância e acrescentam informações interessantes à história. Claro que algumas poderiam ser suprimidas sem prejuízo, mas não chegam a prejudicar o ritmo da leitura, nem o entendimento da estória.

    Outra característica que lembra Dan Brown é a estruturação do romance, mais especificamente, o uso de capítulos curtos. Essa técnica não é exclusividade de Brown, mas remete a ele pois é o autor que a usa de forma mais exagerada, com capítulos que não chegam a preencher duas páginas. Rønnow e Weinreich a utilizam de modo bastante eficiente, controlando o ritmo da narrativa e espichando ou encurtando os capítulos de acordo com o nível de tensão das cenas. Não é um thriller detetivesco de ação ininterrupta, que possivelmente deixaria o leitor exausto ao final. Há cenas mais contemplativas – geralmente as que entregam ao leitor mais informações sobre a personalidade dos personagens – que permitem ao leitor “respirar” e recuperar o fôlego antes que o próximo conflito se apresente. E, mesmo não incluindo cliffhangers a cada final de capítulo, os autores fazem o leitor se sentir compelido a continuar.

    Interessante notar que, ao contrário da maioria dos thrillers, em que a corrida contra o tempo tem a finalidade de encontrar um (ou mais) criminoso(s), neste os protagonistas estão à procura de homens bons, geralmente envolvidos com alguma ação humanitária. Todas as pistas são analisadas com o intuito de localizar os próximos alvos e não o responsável pelas mortes. E essa inversão é citada várias vezes no texto, quando os personagens questionam por que é tão mais fácil empreender uma busca a um homem mau e por que as pessoas relutam tanto a ajudar quando o objetivo é encontrar uma pessoa boa.

    Para os leitores que apreciam um bom thriller que não seja apenas um encadeamento de cenas de ação intercaladas com verbetes da wikipedia este é sob medida. Diversão e entretenimento de qualidade.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Tripé do Tripúdio e Outros Contos Hediondos – Glauco Mattoso

    Resenha | Tripé do Tripúdio e Outros Contos Hediondos – Glauco Mattoso

    tripe do tripudio - glauco mattoso

     

    Poeta desde a década de setenta, o pseudônimo de Glauco Mattoso vem da doença degenerativa do nervo ótico que, em 1995, lhe deixou completamente cego. Escritor profícuo de poemas, em destaque para sonetos que revelam seu apuro técnico, Mattoso sempre foi considerado um poeta marginal pela temática erótica e fetichista, publicando seus contos e poesias em pequenas editoras.

    Com sessenta anos completados em 2011, uma quantidade invejável de sonetos – mais de dois mil – a obra do poeta vem sendo reconsiderada, perdendo a postura moralista de outrora e galgando-o ao merecido posto de destaque de grande poeta contemporâneo. Em comemoração ao seu sexagenário, o selo Tordesilhas, da Editora Alaúde, lança Tripé do Tripúdio e outros contos hediondos, um inédito que dá inicio a republicação da obra do autor.

    Tripe do Tripúdio e outros contos hediondos dá sequência lógica a obra de Mattoso, ao mesmo tempo que remete-se a lírica escrita anteriormente. Debruçando-se sobre os próprio sonetos, o autor recria as histórias que foram a fonte de inspiração, como uma espécia de desconstrução da própria obra artística.

    Embora os sonetos mencionados não estejam disponíveis no volume, a maioria pode ser encontrada online e lida em simultâneo a esta obra. A cada conto, o autor resgata da memória o elemento que foi responsável pela composição de seus sonetos, equilibrando-se no desenrolar memorialístico e na linguagem oral, valendo-se em muitas narrativas do diálogo direto com outros amigos personagens, dando maior vivacidade a história, como se o público parecesse inserido nela.

    Na temática, Mattoso sempre quebra a parede íntima das personagens, apresentando ao leitor histórias de sexualidade e seu explícito fetiche por pés que sempre deixa o autor – ao menos como personagem – imaginando formatos, tamanhos e odores.

    Em uma primeira leitura, a prosa causa estranhamento nos leitores. Mattoso escreve sobre um universo sexual de maneira natural, não traduzindo qualquer orientação ou fetiche como um tabu, mas sim como uma faceta existente dentro de nossa complexidade. Explora taras, fetiches, desejos, sem nunca tratá-los como excludentes ou marginalizados.

    Os vinte e cinco contos desta coletânea perpassam um longo período de sua carreira, desde a época em que ainda enxergava, contemplando visualmente os pés que passavam ao seu redor, até a perda completa da visão, em que vale-se da descrição de amigos e de próprio tato para saboreá-los.

    Não há pudor que substitua a imagética de suas cenas, criadas a partir de uma prosa bem elaborada, apoiada no estilo narrativo da crônica, que podem envergonhar leitores mais pudicos. A linguagem é limpa, sem rebuscamento e repleta de riqueza narrativa.

    Podólotra assumido e simpatizante de outros fetiches, há quem possa observar uma repetição temática constante nos vinte e cinco contos. Histórias de descobertas sexuais na infância, personagens vingativos que fazem do desejo objeto de rebaixamento, e outras histórias de um narrador que parece contá-las a um amigo íntimo, sem rodeios.

    Mesmo versando sobre um mesmo tema, a pluralidade de seu talento é evidente, explorando com genuína naturalidade o lado obscuro da sexualidade sem cair na polêmica ou evitar uma história pelo tabu.

    Lançado em capa dura com uma sobrecapa que destaca uma pintura de Magritte, o livro ainda conta com um bom posfácio de Antonio Vicente Pietroforte, que insere o poeta na história de nossa poesia, com seu estilo peculiar.

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  • Resenha | Uma Porta para um Quarto Escuro – Antonio Cestaro

    Resenha | Uma Porta para um Quarto Escuro – Antonio Cestaro

    uma porta para um quarto escuroO selo Tordesilhas, da Editora Alaúde, tem sido interessante novidade no mercado editorial brasileiro. Tem resgatado grandes obras em belas edições, lançado nova traduções de clássicos e dado espaço para a literatura brasileira, tanto em relançamentos quanto novos escritores.

    Empresário e músico, Antonio Cestaro aproveita a potência de sua editora para lançar no mercado uma primeira obra de ficção: Uma Porta Para Um Quarto Escuro.

    Desde seu trabalho gráfico a composição do livro é diferenciada. A capa sem título tem apenas a imagem de uma porta envelhecida, tão detalhada que possui alto-relevo na superfície. Além de um marcador de páginas em cetim, a edição é composta em páginas pretas, com ilustrações de Amanda Rodrigues Cestaro, produzindo no leitor um sentimento maior do que a simples leitura de memórias.

    Composto por trinta pequenos contos, o livro é construído pela memória sentimental. Em uma primeira observação, o título e a composição gráfica do livro podem remeter aos lugares escuros da memória. Mas a porta que se abre é a saudade de tempos imemoriais. Escuro pela falta de linearidade da memória, dos elementos sensitivos que mesmo quando lembrados guardam somente uma parcela da verdade.

    Transitando entre a crônica e certo lirismo poético, o livro inicia-se com pequenas pontuações sobre a vida cotidiana. Os sentimentos internos que cada um de nós projetamos, mas que guardamos para si. São rememorações da infância, de outras percepções sobre as quais somente um homem maduro é capaz de ponderar. Enquanto reflete, Cestaro conta causos mediados pelo humor, mantendo uma linguagem coloquial como quem conversa com um amigo próximo. Cada narrativa é acompanhada por uma ilustração de Amanda Cestaro que, nos traços infantis, parece explicitar a máxima da memória afetiva, sempre lembrada mais pelo seu lado iluminado.

    Diferentemente do que se pode inferir, a brevidade dos contos não significa uma leitura rápida – um erro em que muitos leitores incorrem pelo tamanho do texto. Os contos e suas ilustrações devem ser saboreados no tempo necessário, como exige uma literatura com mais páginas, compreendendo cada memória e misturando-as com as dos leitores.