Shakespeare talvez seja um dos autores mais adaptados pelo cinema. Em versões de época ou modernizadas, fiéis aos diálogos ou adaptadas, de menor e maior sucesso, há centenas de filmes baseados em peças shakespearianas, muitas vezes, diversas versões para a mesma peça. Ainda assim, soou surpreendente quando Joss Whedon, recém-saído das filmagens de Os Vingadores, anunciou sua própria versão de Muito Barulho Por Nada.
O filme foi feito em doze dias de pausa nas filmagens da franquia. Whedon ainda tinha direito aos equipamentos, embora a equipe estivesse de folga e, portanto, juntou alguns amigos em sua casa na Califórnia e filmou com orçamento mínimo a comédia clássica. Em algumas entrevistas, ele afirmou que foi uma brincadeira de amigos, algo como dar uma festa muito elaborada, e a sensação do filme é exatamente essa.
Muito Barulho Por Nada é, como a maior parte das comédias de Shakespeare, menos conhecida que suas tragédias. A história se passa em Messina e apresenta dois casais de amantes, um que terá que superar as armações de um vilão invejoso, e outro que, sem querer, descobrirá que não despreza tanto assim o amor. A trama dupla é cheia de tiradas verbais, trocadilhos, disfarces e armações e Whedon capta maravilhosamente seu espírito.
A mistura de cenário contemporâneo com diálogos do século XVI é delicada: há adaptações de Shakespeare que soam artificiais, deslocadas, estranhas. Mas aqui, a casa com ares de terraço italiano e a visível despretensão dos atores faz com que o filme ganhe ares de se passar fora de qualquer tempo e espaço, a história torna-se uma fábula, algo como uma parábola sobre amores e amantes. Esse ar de descompromisso e a preocupação zero com o realismo da coisa dão charme e colocam Muito Barulho Por Nada em algum lugar entre o cinema e o teatro filmado.
A peça se passa toda no castelo de Leonato, com personagens entrando e saindo ou passeando pelos jardins e Whedon não tenta complicar a cenografia. Os atores se deslocam em uma casa de decoração limpa, sofisticada, mas sem grandes adornos. Isso contribui para a atmosfera de sonho e permite que a ação se concentre e o espectador tenha mais facilidade em acompanhar a trama intrincada e os ricos diálogos. A complexidade da prosa e a rapidez das falas, aliás, são um dos poucos problemas do filme: o texto em inglês é original (apenas uma alteração foi feita, para retirar uma fala anti-semita) e as legendas acompanham a tradução em português da obra. No entanto, os atores falam rápido, sobretudo nos momentos em que Beatrice e Benedick (um dos casais de protagonistas) trocam insultos irônicos e às vezes torna-se difícil acompanhar.
Ainda assim, a ironia do texto e o ar espirituoso dos atores faz com que a comédia funcione. Os diálogos entre Beatrice e Benedick são deliciosos, trocas divertidas e bem humoradas de falas inspiradas onde pode se ver claramente que os dois atores se divertem tanto, ou mais do que a plateia. E o charme de Muito Barulho Por Nada é bem esse: um filme em que todo mundo parece se divertir.
Mais do que a ironia, o diretor respeita as “incorreções” do texto: há sempre uma taça de vinho na mão de um personagem e closes na bela Beatrice engolindo a sua de uma vez só. Honrando um texto que deveria ser bastante escandaloso para sua época, o diretor não se priva de sequências bastante sensuais e constrói uma tensão quase palpável entre seus protagonistas.
A impressão geral (e a verdade, provavelmente) é que Joss Whedon fez um filme para si mesmo e seus amigos, juntou-os em casa e arranjou uma desculpa para beber vinho (muito vinho é consumido pelos personagens ao longo do filme), dar festas e recitar o dramaturgo inglês. A fotografia em preto e branco dá uma cara minimalista ao que poderia ser mínimo e a acidez do texto é honrada pelas atuações excelentes. É um filme divertido, leve, lindo e delicioso, ao final a vontade é implorar para que Whedon dê mais festas e adapte mais peças de Shakespeare.
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Texto de autoria de Isadora Sinay.