Lembro de ter assistido a um filme que se tratava, em uma França futurista no ano de 2023, de um homem coagido pelo deus egípcio Horus a ajudá-lo a se vingar de Anubis e outros deuses imortais. Pouco me lembro deste filme, mal sabia que ele era baseado em uma trilogia de histórias escritas pelo artista e cineasta Enki Bilal. O francês foi convidado frequentemente a publicar histórias na revista Heavy Metal entre outras editoras, inclusive as duas primeiras que constituem a trilogia da personagem Alcide Nikopol. A habilidade e talento de Enki para a criação e elaboração detalhadas de cenários em quadrinhos, feitos totalmente à mão, são tão magníficos quanto grandiosos, fazendo-nos imaginar que tenha se inspirado nos trabalhos de Ralph McQuarrie e Hayao Miyazaki.
A primeira história da trilogia Nikopol, A Feira dos imortais, de 1980, mostra como o personagem de Alcide Nikopol, um astronauta que foi condenado a vagar no espaço durante 30 anos em uma câmara criogênica, retorna ao caótico cenário de uma sociedade desajustada à mercê de uma nova ditadura fascista em Paris, no ano de 2023.
Ao acordar, Nikopol descobre-se em posse de Horus, deus imortal e renegado de seus iguais, que traçava um plano de vingança contra outros imortais. O decorrer da história mostra quão modificada estava Paris enquanto o astronauta estava desacordado, inclusive com a existência de um filho, nascido em sua ausência, com a mesma idade de quando foi enviado ao espaço. Viajantes alienígenas são parte da nova miscigenação; ainda há sinais de contaminação e doença causados por duas guerras atômicas; além da separação de habitantes pobres e ignorantes, totalmente desprezados pela elite comandada por homens, enquanto mulheres eram aprisionadas e condenadas a repopular a nação.
O governador de Paris, Jean-Ferdinand Choublanc, é atacado e comparado, pelo autor, a ditadores da história mundial, principalmente a Mussolini. Tudo é apresentado aos poucos enquanto admiramos os cenários ao estilo steam punk criados por Enki. No fim, Nikopol se rende a Horus e juntos tramam a abdicação de Choublanc para assumir o controle de Paris e livrar a população do governo fascista. Além de conseguir a vingança contra os imortais em uma viagem para se opor aos poderes corruptos dos megalomaníacos do século 21. Infelizmente, o final não é dos mais adequados a ambas as partes.
A Mulher Armadilha, escrita em 1986, nos leva à futura Londres e apresenta uma nova personagem, Jill Bioskop, uma espécie de repórter investigativa que está em crise após os acontecimentos com seu atual contato e amante. Se passaram dois anos desde a última história e, apesar de sua aparência nada convencional (Jill tem a pele branca com cabelos, lábios e lágrimas azuis), nada disso é explorado na história. Nikopol desperta de sua nova prisão em um asilo psiquiátrico ao mesmo tempo em que um grupo de astronautas liberta Horus, preso em uma pedra no espaço (mais tarde é revelado que, na verdade, a pedra era uma parte da nave dos Deuses Imortais).
Jill, em um surto, ingere drogas para esquecer seus problemas e tentar se concentrar no trabalho, porém nada ajuda. Ao se dirigir a Berlim, na tentativa de mudar o foco de suas preocupações, a mulher azul se torna cada vez mais perturbada, principalmente ao se deparar com Horus. Após sair à procura do Deus Imortal, Nikopol, que saiu do hospital com a ajuda de seu filho, torna-se Imortal. Os dois personagens principais se unem novamente, mas desta vez com uma condição estipulada por Nikopol, a de aproveitar a vida e deixar o passado para trás. Os três passam a conviver juntos até o futuro retorno dos Imortais.
Em Frio Equador, escrito em 1992, o francês termina a trilogia de forma inusitada. 18 anos após os acontecimentos de A Mulher Armadilha, Nikopol, Horus e Jill se reencontram. Um filho surge, mas nada se sabe sobre ele. Jill desaparece enquanto Nikopol e Horus continuam a viver juntos. Sob o pseudônimo de Loopkin, anagrama de seu próprio nome, Nikopol se torna profissional no jogo de Chess-Boxing, uma mistura cômica e sem sentido de xadrez e boxe.
A segunda história é dedicada ao filho de Nikopol que está à procura de seu pai por motivos de autoesclarecimento. Nessa história, os casos políticos voltam às atenções ao ambiente particularmente estranho no Equador devido a um grupo anarcoterrorista que controla a cidade. Com a reaparição da pirâmide nos céus do mundo inteiro, Outros Deuses Imortais procuram por Horus para cessar seus atos de rebeldia, pondo um fim definitivo. A história se completa formando um ciclo que promete continuar no ano de 2064, segundo a nota do autor. A parceria entre o deus e o homem tem um fim no reencontro acidental entre Nikopol e sua amada Jill.
Para uma história de ficção científica, Enki Bilal insere elementos bem diferentes do comum. A aparição de deuses egípcios, em contraponto com o governador na primeira história, destaca a veia cômica do autor, mostrando como esta visão futurista está rendida à moda e aparência a tal ponto de desumanizar-nos. Ainda que haja a inclusão de personagens alienígenas, os pobres decadentes não são base da história, são apenas um apelo ou crítica política às questões raciais e sociais renegadas, expostas de forma fria e particular pelo autor para mostrar o quanto a sociedade ruiu com o passar do tempo.
Na segunda parte da terceira história, vemos um futuro menos colorido e mais cinza do que o primeiro, perdendo o tom sarcástico das cores de roupas e maquiagens e ganhando maior liberdade, principalmente as mulheres. A sociedade se encontra mais miscigenada, porém a história é ainda mais centrada em mostrar o que acontece com os personagens principais, desta vez com uma mensagem diferente que a anterior. Apesar de retornar com possíveis críticas a empresas que se dizem benfeitoras e munidas de recursos, mas que não fazem nada que não seja para bem próprio, a história do último ato é como um final feliz, talvez com um plot twist no final para alguns.
O final mostra brevemente o quanto os personagens principais se gostavam a ponto de ter que se separarem para continuarem a viver em paz. Mas também volta com um pouco mais de humor, principalmente com a questão do Chess-Boxing, ausente na segunda parte. É uma história bem psicodélica, cheia de formas Kafkianas. Um belo thriller no estilo de Blade Runner.
Lançada em volume único com capa dura pela editora Nemo, a Trilogia Nikopol também traz artes extras de Enki, além de algumas notas extras ao final de cada edição. Quanto ao filme, bem, terei de vê-lo novamente, pois a história da qual me lembro era um pouco diferente, como um apanhado destas três histórias. O filme foi escrito e dirigido pelo próprio Enki Bilal e com toda a certeza vale a pena conferir.
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Texto de Autoria de Bruno Gaspar.