A literatura latino-americana tem como um de seus primeiros registros formais as crônicas de viagens compostas por conquistadores, catequizadores e outros navegantes que chegaram até a América como parte da colonização européia. Um conjunto definido como a primeira literatura produzida no continente, ignorando que, antes da invasão européia, a população natural do continente possuía história e legado.
O registro feito por tais conquistadores é apenas parte dos acontecimentos. Apresenta a visão do colonizador sobre os nativos selvagens, sem deus, maltratados e sacrificados pelos colonizadores que consideravam a extinção dos povos um processo necessário para a conquista e a descoberta de ouro, prata e outros bens palpáveis para suas coroas.
Graças ao registro de navegantes como Cristovão Colombo, Hernán Cortés, Cabeza de Vaca e de religiosos como Frei Bartolomeu de Las Casas – que defendeu a causa do índios – é possível compreender as motivações da conquista da América e como seu processo foi cruel.
Nega-se toda cultura e a tradição indígenas existentes no continente anterior à conquista, como se as diversas tribos não tivessem suas próprias histórias, lendas e costumes. Uma tradição própria que explicava as condições da natureza, dos animais e de outros elementos que conviviam diariamente com esses povos.
Na vasta fragmentação historiográfica e literária, Eduardo Galeano compõe uma trilogia que resgata um pouco de brilho desta cultura massacrada. Uma trilogia que parte de momentos anteriores à colonização, como uma espécie de gênese da literatura indígena até os tempos modernos.
A intenção do autor não é meramente historiográfica, apresentando datas e acontecimentos formais através dos séculos. Mas fazer deste cenário matéria para compor uma prosa poética capaz de resgatar os elementos tradicionais destas culturas, alinhando-as e mantendo-as vivas. Sob este aspecto, nada mais coerente do que o título Memórias do Fogo como uma chama que, mesmo com a violência das conquistas, não se apagou integralmente.
O primeiro livro, Os Nascimentos, parte da América pré-colombiana até o século 1700. Galeano utilizou mais de 200 livros em sua pesquisa para compor os microcontos que preenchem este livro. Resultou em um painel denso e descritivo de como viviam as diversas tribos antes da colonização e de como o velho Novo Mundo foi visto pelos estrangeiros.
Dividido em duas partes, Primeiras Vozes é um compêndio de lendas sobre a criação da Terra. São interpretações ricas e variadas em uma época na qual a ciência não dominava o homem e muitas inferências sobre o funcionamento do mundo eram feitas por observações e composição imaginária de tais feitos. Cada elemento da natureza é justificado com uma história que demonstra que não só na Grécia – dito berço da civilização européia – havia espaço para deuses, lendas e histórias que deixavam lições para os ouvintes.
Ao alinhar as diversas histórias indígenas, cria-se um gênese apócrifo que situa a América além do criacionismo bíblico, evocando tribos diferentes que foram caladas por outros povos. Uma reconquista da identidade da Latino-América, recuperando a mitologia tradicional do local, equilibrando a história oficial dos colonizadores pela história oprimida.
A segunda parte do livro, O Velho Novo Mundo, ocupa a maior parte da narrativa, e parte desde que Colombo avistou as terras do continente e se viu maravilhado com sua vegetação e com a simpatia dos povos, até o final do século 18, com a morte do débil rei Carlos II.
As exuberantes lendas indígenas cedem espaço para uma prosa que se aproxima um pouco da crônica sem perder a poética. Ao contrário do elemento maravilhoso da primeira parte, as viagens de colonização e exploração da América vão carregando-se, pouco a pouco, de um amargor em suas entrelinhas. O deslumbramento romântico de Colombo se dissipa em saques de ouro e prata e nas incursões dos espanhóis para dominar os índios e catequizá-los.
Ciente de que a história das conquistas é ampla, Galeano pontua o ano e o local em que aconteceu cada momento narrado. A narrativa dramatiza as cenas e não poupa o leitor da violência sofrida pelos nativos. A queda da cidade Maia, as bulas do papa afirmando que os índios possuem alma, para situar dois exemplos, agridem pela crueldade de um época que não parecia haver limites para impor a vontade dos dominantes. Acompanhado de cada conto, há as referências originais vindas da pesquisa de Galeano para que o leitor interessado possa ampliar suas leituras com outros materiais e outras fontes além da narrativa.
Na composição entre Literatura e História, o escritor promove um extenso panorama de uma época difícil de ser analisada devido a sua multiplicidade cultural antes das conquistas, e sua violência após estas. Pequenas narrativas de grandes momentos históricos que estigmatizaram grande parte da América e que, ainda hoje, são vistos mais comumente pelos olhos dos homens que carregavam espadas e pilharam as riquezas do local.