Os 14 anos do governo de Hugo Chávez certamente ainda serão foco de discussões por longos anos, mas, quer o vejam como um herói libertador, quer o encarem como um reles ditador, parece ser consenso entre simpatizantes e críticos que sua ascensão ao poder foi um dos fatos políticos mais importantes não só da história recente da Venezuela, como também de toda a América Latina. Passado pouco mais de um ano desde o anúncio da morte do Comandante, como era chamado por seus partidários, momento em que seu sucessor enfrenta protestos e revoltas populares, os sentidos do chavismo e seu impacto a longo prazo geram incerteza. Tudo de que dispomos até agora são recortes e interpretações desse período. Rory Carroll, jornalista do The Guardian que cobriu de perto a situação venezuelana de 2006 a 2012, apresenta um dos mais valiosos desses recortes em seu Comandante – A Venezuela de Hugo Chávez.
Lançado no Brasil pela Editora Intrínseca poucos meses após sua publicação original, o livro-reportagem faz uso da típica linguagem documental, rica em locais, datas e nomes, que poderia, à primeira vista, afastar o leitor mais casual. Entretanto, Carroll demonstra habilidade em juntar o factual (que, ao fim e a cabo, é onde está o verdadeiro valor da obra) a narrativas particulares e episódios interessantes, que o permitem fugir do maçante para se criar uma leitura instigante. Logo no prólogo o autor faz uso de um traquejo literário, contando um episódio ocorrido em 1999 – após a primeira vitória de Chávez nas urnas. Ele e o prêmio Nobel de Literatura Gabriel Garcia Márquez viajaram juntos para Cuba a convite de Fidel Castro. Fora o primeiro encontro do político com o aclamado escritor, e este último posteriormente escreveu sobre a ocasião que “enquanto ele se retirava com seus guarda-costas, oficiais condecorados e amigos íntimos, fui tomado pelo sentimento de que acabara de viajar e ter uma conversa agradável com dois homens opostos. Um a quem os caprichos do destino deram a oportunidade de salvar seu país. O outro, um ilusionista que poderia entrar para os livros da história como apenas mais um déspota”. Essa ideia permeia as quase 300 páginas do volume, ao longo das quais o jornalista irlandês aponta tanto o salvador quanto o ilusionista, tentando descobrir, enfim, qual deles fora Chávez.
A fim de cumprir a tarefa, Carroll traça um detalhado perfil do líder político, desde a infância pobre (embora nem de longe tão pobre como ele quis fazer crer em seus discursos) até a aparição no cenário político (iniciada em âmbito nacional por uma malfadada tentativa de golpe militar promovido por ele e por outros conspiradores que, anos depois, seriam presenteados com postos de destaque), passando por sua conturbada carreira militar, por sua idolatria por Jesus Cristo, Karl Marx e Simón Bolívar, entre outros aspectos de sua pitoresca persona. O soldado e o intelectual, o homem das tradições e o revolucionário, todas as facetas da complexa, por vezes esquizofrênica, porém inegavelmente carismática figura de Chávez estão presentes no livro – cada uma delas, por mais que contradiga todas as outras, respaldada por relatos e entrevistas que o autor, num primoroso exercício de um das mais básicas funções do jornalista, a de dar voz à população, recolheu às centenas.
Ministros, operários, fazendeiros, taxistas, traficantes; relatos de toda a sorte de indivíduos acerca do presidente foram recolhidos, e até o mais ferrenho de seus detratores demonstra, talvez por medo, certo respeito por sua pessoa. Mesmo o autor não escapa à regra, deixando transparecer, em mais de um momento, algo que se assemelha à admiração, o que rendeu algumas críticas a seu trabalho, ainda que esse sentimento indefinido esteja soterrado sob linhas e mais linhas de avaliações negativas quanto à rápida precarização dos serviços e da indústria. O desenvolvimento de um culto de personalidade, apoiado pela massiva utilização da televisão e do rádio, é similar ao das ditaduras sanguinárias do século passado, com o palatino aumento dos índices de criminalidade, entre outros retrocessos trazidos pelo Partido Socialista Unido da Venezuela.
A despeito de qualquer simpatia que pudesse nutrir por Chávez, conforme avança o escrito, Rory Carroll assume um tom cada vez mais pessimista, concluindo, após narrar a novela dos últimos dias do Comandante, com uma sombria avaliação de seu legado e do futuro do país, conforme deixa claro já no título do capítulo que encerra a obra, O Ilusionista, no qual resgata o comentário de Garcia Márquez. Avaliação esta que, à luz dos eventos recentes, parece bastante acertada. Em um texto que possui valor não apenas documental, mas também literário, o jornalista apresenta um consistente olhar sobre uma das mais importantes personalidades de nossos tempos, que merece ser lido pelos que o amaram e também pelos que o desprezaram.
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Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.