O filósofo Friedrich Hegel dizia que as coisas tendem a se duplicar, e Karl Marx complementaria este pensamento afirmando que a primeira vez desta duplicação é sempre uma tragédia, enquanto a segunda, uma farsa. Tais máximas são citadas no novo filme de Denis Villeneuve baseado no romance O Homem Duplicado do nobel José Saramago, reafirmando a parceria do diretor com Jake Gyllenhaal ao recorrer a um estilo com um pé no grotesco, uma temática que lhe é familiar, ainda muito na esteira do suspense Os Suspeitos.
O roteiro de Javier Gullón acompanha, após uma introdução que revelaria muito do enredo, a rotina do depressivo professor de história Adam Bell (Gyllenhaal). Curioso como o personagem principal é retratado em cenas de fantasias sexuais idílicas e lembranças da quase impotência que sofre junto a sua então parceira Mary, Mélanie Laurent – o que por si só já evidencia que algo está errado, visto que a aparência de sua esposa é belíssima. Nos momentos em que sua rotina é mostrada, nenhum motivo gritante é conduzido como o catalisador desta condição depressiva. A fonte do problema parece ser o próprio conjunto de elementos que caracterizam o cotidiano do homem, relacionando-se com a inadequação de viver em um mundo distante demais dos seus ideais. No entanto, é aventada a possibilidade simples do homem só sofrer do problema unicamente por estar vivo, mostrando que esta já é uma justificativa suficiente para derrubar sua autoestima.
Um popular – o clássico homem ordinário – avista-o, dando a ele uma dica sobre um filme (Querer é Poder) e, sem qualquer pretensão, Adam assiste à película. Assistindo-a com atenção, ele percebe que é parecido com um personagem, cujo papel no filme é bem pequeno. A concupiscência faz Adam se interessar pela vida de Anthony Claire (o ator), passando da indiferença para a leve curiosidade, evoluindo, a posteriori, para uma cinefilia seletiva através da qual assiste aos filmes do artista e depois recompõe o que seriam os seus passos fazendo deles a sua própria rotina, como, por exemplo, visitando o prédio de uma produtora. O hobby torna-se uma obsessão e Adam tenta entrar em contato com Anthony, descobrindo que este também tem a voz muito semelhante a dele.
Decorridos mais de trinta minutos de filme, o protagonismo passa a variar caindo sob a responsabilidade do ator, o que demonstra que sua vida pessoal também é deveras complicada. Com uma carreira interrompida e uma esposa gestante — Helen (Sarah Gadon), cuja semelhança física remete a Mary —, revela-se que ambos têm muito mais em comum do que uma aparente e paranoica ligação no meio da noite poderia fazê-lo supor.
A dualidade do ofício de Anthony faz Helen ficar em dúvida. Primeiro, por um caso de infelicidade do passado que o homem jurou não mais em incorrer, assunto inclusive evitado por ele; segundo, pelo encontro “frustrado” entre as contrapartes ao qual ela faz questão de comparecer. As dúvidas que lhe vêm são pertinentes, especialmente se analisar seu passado. Além de interrogações bem construídas para a personagem, ainda levantam-se dúvidas sobre a veracidade dos fatos ocorridos, pondo uma interrogação no que seria a realidade ou fruto da paranoia das pessoas que correm à trama.
Os dois resolvem se pôr frente a frente em um local neutro, e a evidência da verdade abala a ambos, ainda que suas reações sejam bastante diversas. O papel de perseguidor e perseguido se inverte, assim como a fantasia de se ter outra vida que não a que ele possui. A descoberta mexe com a psiquê de Anthony, fazendo-o reviver alguns de seus fantasmas. Ele leva este problema a sua pseudoterapeuta (sua mãe), que pede para ele abstrair-se em sua própria vida e não cair na tentação de não conseguir manter-se com uma só mulher. A volúpia do aposentado artista o faz cobiçar a mulher de sua contraparte, fazendo-o até mesmo considerar tal desejo um ato normal, diferentemente de suas infidelidades anteriores. A troca de vidas acaba sendo mútua, apesar da coação de Anthony sobre Adam e de todo o planejamento do primeiro.
As esposas reagem de forma diversa, mas têm em comum a confusão sentimental, não tendo uma certeza tão grande em relação à identidade do “cônjuge”. O final, de conteúdo quimérico, resgata o início, reforçando a ideia de que a mente de Adam sofre sérios problemas, pois, mesmo com a mudança de ares, ele permanece assombrado pelas fobias, tendo no máximo um alívio transitório em suas inseguranças.
A metáfora, apresentada minutos antes dos créditos finais, tem um significado diferente do apresentado no romance de Saramago e, como quase tudo na mensagem do filme, possui dubiedade ímpar. Mais uma vez, Villeneuve convida o espectador a vivenciar uma experiência misteriosa, cativante e que, apesar de fazer muitas concessões à realidade e à vida mundana, prossegue em paralelos a problemas reais e comuns ao homem moderno, tais como depressão, infidelidade e a necessidade de se fugir da realidade.