Narrado a partir da vivência de seu autor enquanto jornalista de guerra, Planeta dos Macacos foi um pequeno romance publicado em 1963 por Pierre Boulle, cujos direitos autorais foram comprados pelo produtor de cinema Arthur P. Jacobs antes mesmo de chegar às livrarias. A obra era refutada pelo escritor, que a considerava algo menor, de qualidade inferior em comparação com o resto de sua carreira. Tal motivo é muito discutido pelo corpo de admiradores de sua obra, a possibilidade aventada seria outra questão. A Ponte do Rio Kwai, lançado em 1951 e que também gerou um premiado filme de David Lean, contaria partes das vivências de Boulle em meio a guerra, e se tornou um clássico instantâneo, enquanto o original La Planète des Singes remeteria ao período de 1943, em que foi prisioneiro de guerra no Japão.
O tom narrativo é direto e coloquial, Boulle não buscou qualquer firula em seu modo de abordar, ao contrário, se vale de recursos metalinguísticos para tornar a sua história mais palatável que seus primos do mundo sci-fi. Nos dois primeiros parágrafos – muito curtos, por sinal – já fica claro que aqueles eram tempos em que as viagens espaciais eram mais comuns, onde qualquer indivíduo poderia explorar a galáxia sem maiores dificuldades. Dada tal condição, são apresentados dois personagens – um casal, Jinn e Phyllis – que em sua excentricidade, decidem viajar em um transporte que se locomovia a vela – a impossibilidade e suspensão de descrença é deixada de lado, em nome da influência clara dos trabalhos pregressos de Julio Verne, que entendia ser possível fazer viagens tão extensas com veículos tão primitivos. A convivência de tantas excentricidades com a modernidade é curiosa, e abriria os olhos dos roteiristas do filme de 1968 para as variações de cronologia.
O cruzeiro interespacial teria ainda muitas semelhanças com a navegação pelos mares, uma vez que a dupla vê a frente de sua nau um corpo estranho, uma garrafa, cujo interior continha um rolo de papel, embalado dentro do vidro, de modo que não poderia ser aberto sem danificar o invólucro. O pergaminho era uma carta, de onde viria a história explorada pelos outros capítulos. O conteúdo textual começa alarmista, com seu autor temendo pelo futuro de toda a raça humana – o que obviamente assusta muito Phyllis. O relato prossegue, narrado por Ulysse Mérou, que não esconde a catástrofe pela qual passou, afirmando que sua nave estava à deriva pouco antes dele liberar a garrafa.
Após o preâmbulo, o relato começa, recordando os fatos que o levaram àquela situação. Em 2500, uma ousada excursão espacial levaria os terráqueos até Betelgeuse, uma estrela vermelha de proporções dantescas. A idealização do primeiro voo intersideral da história proviria de Antelle, um professor e cientista que também tripularia a nave. Ulysse segue a viagem preocupado, dado que o pioneirismo da viagem poderia significar também um maior perigo para os astronautas. Parte da não preocupação de Antelle se dá por sua característica misantrópica, o pouco apreço que tinha pelos homens não o fazia se preocupar muito com a situação em que se empunham – tal característica no filme seria amputada a Taylor, personagem de Charlton Heston. Completava a tripulação o físico Arthur Levain, que, afeiçoado por Ulysse, resolveu chamá-lo a expedição, tanto por ser um exímio jogador de xadrez – o que faria dele uma boa companhia em meio a longa viagem espacial – e também por seu ofício, como jornalista. Catalogar as descobertas e organizar tudo de um modo histórico aprazível em texto seria uma de suas missões secundárias, o que acabou mudando, evidentemente.
Após passar pela estrela rubra, eles decidem pousar em um planeta. À primeira vista, ele é muito semelhante a atmosfera terrestre, tendo planícies, fauna e flora praticamente idênticas ao local de onde vieram. O grupo resolveu batizar o local de Soror. Ao ter contato com o primeiro ser humano, Ulysse é vagaroso ao descrever o encontro com a tal “moça”. Sua perplexidade se dá pela pouca credulidade em notar a não civilização e selvageria que se esconde atrás de seus belos olhos. A despedida dela é súbita, quase mágica, como se a sua aparição fosse algo genuinamente raro. A carência do narrador era tanta que qualquer proximidade de relação era louvada e admirada. No entanto, os outros contatos com os selvagens são tímidos, esporádicos e comedidos, visando a não interferência em seu habitat.
Os astronautas logo notam que a interação dos homens de Soror com eles é muito semelhante ao modo como os chimpanzés que servem a eles de cobaia agem, até mesmo coincidindo o olhar dessas criaturas. O “excessivo” cuidado é provado como uma atitude certa e não exagerada. O grupo de nativos ataca a nave dos três forasteiros, deixando-os sem roupas e suprimentos, depois, eles são levados como prisioneiros. A hostilidade dos homens silvestres tem uma boa razão para acontecer, e que é, aos poucos, descortinada. O nível de suspense aumenta, à medida que as palavras são postas no papel, e a tensão piora quando a moça que encantou o jornalista, repara nos olhos de Ulysse. Seu nome seria Nova, e a musa de Mérou seria o alento para sua existência tortuosa naquele lugar.
O relator prefere omitir certos acontecimentos, não escondendo a sua existência factualmente, e sim não dando a importância que é devida a ele. O recurso metalinguístico que Boulle utiliza intui transmitir o medo e o terror que seu alter-ego tem ao mergulhar no âmago de Soror. Sem alarde, o jornalista diz que o macaquinho, que também tripulava a nave, foi destroçado sem qualquer misericórdia por aqueles que os levaram cativos. A escolha por fazer isto não foi arbitrária, a pontualidade dela seria a premonição do que viria e mostraria um pouco do medo daqueles seres viventes, o medo de ser consumido por seu predador. A surpresa de Ulysse ao se deparar com a primeira figura simiesca que atravessa o seu caminho é tamanha que até ele mesmo duvida de suas faculdades visuais e mentais. O gorila que se empunha à sua frente estava devidamente vestido, seus trajes eram de fino corte e sua postura ereta, como a de um humanoide com polegar opositor. A admiração ao contemplar a criatura era como a de um mortal assistindo o desfile de um semideus. O que o fez despertar foram os gritos das vítimas, Mérou não parava de se surpreender, pois o Macaco caçava os homens, e parecia sentir prazer em ver a dor alheia. Nem mesmo esta apresentação dantesca fez ele se convencer de que tentar fugir era um esforço fútil. Os terráqueos eram presas fáceis, visto que os macacos do Planeta Soror eram muitos, numerosos como uma sociedade e soberanos sobre aquele solo. Eles estavam emboscados e sequer notaram.
Uma vez capturado, o jornalista em seu ofício de registrar tudo o que lhes acomete, reporta os maus tratos que sofria, evidenciando que não havia qualquer compaixão com os cativos, eram tratados de modo hostil, sem qualquer resquício de compreensão e misericórdia. O desespero dele é causado pela solidão permeada em sua existência e claro, pelo destino que se aproxima, piorada com a derrocada de Antelle e Levain.
Ulysse percebe que para ter uma sobrevida, seria necessário entrar em contato com os que os mantinham cativos, e ele analisa cada um dos que o cerca, encontrando na chimpanzé Zira uma possibilidade de diálogo ou de fala. O começo tímido do contato com os símios passa por uma bateria de exames, cuja dificuldade é baixa, que obviamente subestima seu intelecto de ser pensante, semelhante ao que foi mostrado em A Fuga do Planeta dos Macacos, claro, com papéis entre macacos e humanos invertidos na película. A sociedade daqueles símios é avançada e emula a humana contemporânea. Tem sua língua e hierarquia próprias, com configurações complexas e papéis muito bem descritos e consolidados, visto até pela observação de um analisador finito em suas limitações como é o jornalista enjaulado – a intenção de Boulle é mostrar o quão míope pode ser a visualização de um quadro complexo pelos olhos de um leigo, como e por exemplo a ideia que um incauto tem do quadro político que se apresenta, ainda que o seu observador seja alguém interessado em entender todo o esquema, ao conseguinte de que os tais “incautos” não necessariamente o fazem. A Parte 1 é terminada com Mérou e os outros humanos sendo analisados em seus momentos de intimidade – leia-se coito – o que obviamente o deixa encabulado, para dizer o mínimo. Em nome de aumentar suas chances de se inserir naquele mundo, ele topa ter o sexo visto por aquela inconveniente plateia.
No segundo tomo, Ulysse começa a se resignar com a possibilidade de travar contato com os símios soberanos de Soror, até desiste de falar com Zira, até que em um momento singular ele consegue se comunicar verbalmente com ela, deixando-a intrigado por seu uso da língua, ainda que o traquejo dele não fosse exemplar. Aos poucos ele convence Zira a levá-lo para ver a cidade, claro, fazendo uso de uma coleira, não para humilhar o homem, e sim para não chocar os cidadãos simiescos.
Como bom jornalista que é, Ulysse trata de estudar a sociedade dos macacos, desvendando sua geografia e quadro político, descortinando desde a inexistência de fronteiras e divisão por país até o governo triunvirato, entre orangotangos, gorilas e chimpanzés, cada um com a sua assembleia. No capítulo cinco desta segunda parte é onde ele escrutina sobre as diferenças entre as raças, desenvolvendo o assunto de modo minucioso, dando detalhes até dos movimentos literários protagonizados por cada uma das castas.
Levado por Zira e por seu noivo, o chimpanzé cientista Cornelius, Ulysse deveria se apresentar perante o ministério da ciência, para provar que não era mais um dos homens amestrados, que permeavam os circos de Soror, e lá, mais uma vez encararia Zeius, que antes mesmo da apresentação, já o desacreditou completamente. No entanto, Mérou prosseguiu em sua argumentação, através de seu belo e claro discurso. Seu intuito era provar que nem era como as aves daquele planeta, que podiam repetir algumas palavras, e nem que era um indivíduo hostil. O fim da segunda parte dedica-se a aceitação dele dentro da sociedade de Soror. Ele não demora para se enturmar, mas o seu entusiasmo é cortado pelo encontro que tem com seu antigo igual, o Doutor Antelle, que mesmo após Ulysse muito insistir, permanece agindo como os silvestres homens daquele planeta. Sua decepção serve para alertá-lo de alguns perigos e para mostrar o quão finitas são suas possibilidade de sucesso naquele solo estrangeiro.
Uma vez que Ulysse é aceito pelo grupo como um sujeito civilizado, todo o quadro muda. Passa-se algum tempo e Zeius é exonerado, tendo Cornelius em seu lugar de parlamentar, o que obviamente gerou uma subida de patamar ao partido dos chimpanzés. Ulysse tenta adestrar os outros homens, quase sempre sem sucesso, exceto por Nova, que consegue bons resultados em reproduzir sílabas, no entanto, o distanciamento entre os dois aumentou muito, graças ao abismo social que se fez desde a época em que eles coabitavam.
Paralelo a esse incômodo do humano, seu parceiro símio também se mostra preocupado, com a situação que chega às suas mãos. O objeto da discórdia seria uma boneca de porcelana, de feições humanas e com dispositivo de fala, que reabriria feridas antigas, de teorias sobre a origem da raça símia como seres soberanos dentro do planeta. Para Ulysse isso obviamente não se trata de algo aviltante, mas para os dogmas religiosos e tradicionais defendidos pelos orangotangos, tal situação causaria um enorme escândalo, que claro, cortaria o destino de todos os envolvidos na trama.
Unindo a questão aventada anteriormente, além do estado de saúde de Nova, Ulysse se mostraria um ser instintual, movido também pela verve do sangue quente, que por sua vez era causada por um tímido começo de desprezo pelos símios, que não aceitam a influência humana no começo de sua evolução e também da própria sobrevivência. Internamente, Mérou considera os macacos como imitadores, semelhantes aos símios de seu planeta, e seu desdém aumenta quando é anunciada a notícia de que Nova estava prenha.
O comportamento do narrador do conto visa obviamente a própria sobrevivência, mas, se olhado com cuidado, se notará sobre suas atitudes um bocado de passividade, tendo na volúpia por ser aceito por aqueles que o oprimem um quê de Síndrome de Estocolmo. A vontade de ser tratado como um igual pelos macacos o faz repensar até seu modo de viver e pensar, e aos poucos Ulysse é moldado, para ser o bom selvagem, seus movimentos vão gradativamente se aproximando da ideia que Zeius tem de si. Aí é que mora a principal diferença entre Mérou e Taylor, pois o astronauta vivido por Heston é um desbravador, imberbe de alma arredia. Não aceita em momento algum a supremacia de outra raça, e a despeito de toda a canastrice e das frases de efeito de seu intérprete, ele é sempre o macho alfa, imutável e conservador, como o bom membro do Partido Republicano deve ser. Ulysse é mais humano, mais emotivo, sujeito a falhas e a autoestima baixa, ele é o repórter que mergulha em sua matéria, e como um gonzo, sofre na pele e na alma a dor e as agruras que cercam o mundo. Se Taylor é o arquétipo hercúleo do herói intransponível, Ulysse é o camponês que se vê diante de uma jornada odisseica e que atende o chamado da aventura, mesmo não tendo sido ele o programado para vencer as difíceis e insolúveis tarefas.
É por ser assim que ele titubeia na hora de tomar uma atitude mais enérgica para proteger sua cria e sua “cônjuge”. Apesar de se mostrar alguém que dá atenção aos seus instintos, ele ignora o perigo quando este se aproxima, e sua reação é deveras tardia, mesmo que todas as experiências com homens em Soror o mostrem que ali não é um lugar seguro para ele. A ascensão de Helius dentro do certame científico é mais uma das muitas provas de que ele corre perigo, em virtude das experiências que ele faz com uma tribo de homens, através de eletro-choque os faz falar, e contar algumas experiências de predação, em vidas passadas, onde o macaco é que era a espécie subjugada e “experimentada”.
O quadro estatal aos poucos muda, Zeius retorna à cena política visando derrubar Cornelius, que assiste a sua situação ficar cada vez mais difícil, uma vez que os gorilas possivelmente se alinharão com aqueles que querem manter o status quo. Tomar conhecimento das descobertas de Helius poria o líder parlamentar em sarilhos enormes, num apuro incalculável.
O pouco de ação que ainda guarda em si Ulysse dedica ao seu rebento. Ele vê o menino com olhos apaixonados, e enxerga nele a centelha de inteligência, além de um caráter semi-messiânico, uma característica profética, caso fosse dada a oportunidade ao menino de crescer, como seria retratado nos cinemas na figura (símia) de César em A Conquista do Planeta dos Macacos e O Confronto, o valor de figura pioneira e remissora seria invertido, num revisionismo na obra de Boulle.
A miséria invade o viver de Ulysse, sua rotina de concidadão é mudada do vinho para água, tão logo é descoberto o seu herdeiro. A perseguição a si sofre a interferência de Zira, que tenta auxiliá-lo, facilitando sua fuga, dando condições dele levar Nova e o bebê. No caminho final, ele percebe a abissal distância entre si e os símios, pelas palavras da própria Zira, que não consegue beijá-lo após um momento emotivo, em virtude de sua “feiura”.
Sírius é o nome de batismo do menino. Em Soror, os pares fugitivos foram substituídos por humanos não falantes. Possivelmente seriam poupados por Zeius, uma vez provado que eles não pensavam, tendo assim os dogmas símios intactos. Após toda a luta que tem para finalmente fugir, Ulysse chega a sua terra-natal, no mesmo território francês onde viveu seus dias de homem civilizado, para lá ter uma surpresa tremenda, tão catastrófica quanto a do começo de seu relato em carta. Tanto o final do manuscrito da garrafa quanto a conclusão a que chegam os macacos astronautas Jinn e Phyllis demonstram alguns argumentos reflexivos, como o desdém pelo menos evoluído, típico dos símios e a sensação de obsolescência de Ulysse Mérou, que tanto em Soror quanto na Nova Terra sente-se um fóssil, como o fruto de uma raça involuída que já foi a soberana, mas que em nada lembra todo o poder e magnificência de outrora, sendo somente o esboço da primazia da existência.
Ouça: Planeta dos Macacos.