O público abrangente e a base sólida do mercado brasileiro de quadrinhos possibilitam, hoje, a publicação de pequenas obras autorais que, em outros tempos, não chegariam em nossas mãos. Ainda que a maioria dos leitores de quadrinhos no país se formou com leituras de super heróis, há poucos que evitam ou se incomodam com uma narrativa que não utiliza ganchos e ação em excesso, mantendo o interesse por outras vertentes de estilo dentro das diversas possibilidades que esta arte proporciona.
Os Ignorantes – Relato de Duas Iniciações, lançado neste ano pela WMF Martins Fontes, é uma obra inserida dentro de uma experiência real. Uma metanarrativa que apresenta o autor Étienne Davodeau como personagem, em companhia do amigo vinicultor Richard Leroy, para uma interessante proposta: uma troca de experiências de vida entre ambos. Durante um ano, o quadrinista acompanha a colheita e o processo de composição dos vinhos de Leroy, enquanto o vinicultor conhece o universo das HQs, desde rabiscos feitos para produzir esta história até leituras de obras renomadas e encontros com outros artistas franceses.
Movidos por uma paixão intensa, cada um em seu respectivo ofício, os personagens se veem debruçados sobre um novo universo não explorado. Como guias em uma jornada dupla, diferente de seus cotidianos, contemplam os caminhos que levam a um bom vinho e a uma boa HQ. Uma experiência que funciona pelo mergulho curioso em outro cotidiano.
Recontando a experiência documentada pelos quadrinhos, o leitor se torna testemunha passiva da jornada, mas infelizmente incapaz de participar das leituras e bebidas sorvidas pelos amigos (há no final da edição uma lista apresentando vinhos e leituras degustadas). O vinho e os quadrinhos são artes escolhidas como objeto, mas não centro da obra; é a experiência e a discussão que importam à experiência.
A arte é vista sob um plano geral que aproxima a produção de vinhos e os quadrinhos diante da percepção de que são necessários conhecimento, dedicação, paixão e amor para que o trabalho seja bem realizado. Mesmo que no final do processo o público observe uma garrafa de vinho, ou uma HQ exposta em livraria como um mero objeto, o processo da arte esconde diversas etapas, tanto burocráticas quanto sensíveis, em sua feitura. Dentro da vinícola de Leroy, observamos a importância do solo, as podas diárias e a utilização de produtos naturais para o solo e preservação das uvas, acreditando que o contato direto com a vinha e produtos não industrializados ou químicos produzem uma safra melhor. Não há como desassociar a composição de um vinho de um verdadeiro trabalho artístico, que denota conhecimento externo sobre elementos diversos e um toque de intuição e estilo próprio.
Entre leituras e bebidas, personagens dialogam sobre estas paixões, evidenciando a importância da experiência e opinião sobre a própria arte. Ela é um elemento de aproximação capaz de conectar desconhecidos devido a sua força e à pluralidade de opiniões, uma das motivações que produziria este coletivo. Os artistas não buscam uma supremacia com suas obras, mas um espaço em que se discuta a arte dos quadrinhos e dos vinhos.
Além da paixão pela profissão, há também o prazer em realizá-la. Essa jornada é transformada em uma apetitosa degustação sensorial, um caminho de conhecimento que, em suas linhas gerais, demonstra o quanto uma obra deve ser composta – não importando se arte ou não – com prazer e paixão para um resultado efetivo, como se o trabalho do artista estivesse representando adequadamente a experiência íntima de cada leitor ou degustador. O vinho e os quadrinhos são a referência para reverenciar a arte, e torna-se quase impossível para o leitor, após esta obra, não se sentir tentado a realizar uma experiência pessoal de observação cotidiana e, entre amigos, saborear vinhos, livros e quadrinhos.