A ausência de regras, espaço-limítrofes ou sistemas fornece a liberdade para que artistas utilizem sua biografia a favor da arte. Não faltam exemplos em pinturas, esculturas, cinema, música, quadrinhos que não corroborem com esta afirmação. Autores que transformam a realidade em matéria artística, uma reflexão permitida pela arte, ao produzir um distanciamento necessário a uma nova observação da própria experiência. Uma reinvenção da vida, uma reconstrução da história a partir da memória ou do processo criativo.
Professora de cursos de criação de quadrinhos no Cornish College of Arts em Seattle e desenhista indicada a mais de um prêmio Eisner, Ellen Farley foi diagnosticada aos 30 anos de idade com transtorno bipolar. Como qualquer doença envolvendo transtornos mentais, a recepção inicial por parte da autora é formada pela descrença, seguida da sensação de que um fardo definitivo mudará sua vida e, no seu caso, destruirá sua criatividade, principal fonte de sua composição artística. É esta trajetória que o leitor acompanha em Parafusos – Mania, Depressão, Michelangelo e Eu – Memórias em Quadrinhos de Ellen Forney, lançado pela WMF Martins Fontes em outubro deste ano.
Normalmente, a composição da arte é vista como um conjunto de particularidades de um indivíduo, e um consenso sem razão transformou a profissão artística quase em um processo divino. Por este princípio, a loucura também ganhou contornos poéticos, como um aspecto que produz uma diferenciação ou maior acesso criativo ao artista. A compreensão e aceitação de uma doença sem sintomas aparentes ou visíveis aos olhos ainda são vistas com dúvida pela sociedade. Para qualquer um que sofra qualquer tipo de distúrbio semelhante, é fácil saber que o diagnóstico e as doenças mentais não são tão exagerados como a mídia costuma explorar, mas cuidados são necessários e importantes.
A procura em compreender sua própria condição transforma Ellen em uma pesquisadora dentro do universo das artes, identificando quais personalidades foram diagnosticadas ou – diante de cartas e diários antigos – possivelmente eram possuidoras de um transtorno bipolar: um grupo de diversos artistas, como Van Gogh, Sylvia Plath, Edgar Alan Poe, entre outros, ao qual a autora se refere carinhosamente de Clube Van Gogh. Personagens reais que, à sua maneira, lidaram com problemas iguais em outras épocas. Sem dúvida, há a possibilidade de que alguns destes artistas conseguissem trabalhar ativamente com seus distúrbios, enquanto outros sentiam-se incomodados com as variações de humor. Cada um deles lidando da melhor maneira possível com a enfermidade em questão, transformando-a em matéria artística.
Produzindo um objeto de arte com a própria doença, a autora modifica-a em uma terapia universal, compartilhando o drama interno com leitores ao mesmo tempo que realiza uma obra de referência para o tema, desmitificando o fardo de um transtorno psíquico e o conceito midiático de loucura como forma artística. Seu ofício de ilustradora foi a maneira natural pela qual a autora pode explorar o tema, e uma das maneiras de reencontrar a si mesma.
Os desenhos permitem imersão nos sentimentos mutáveis da personagem e nas diversas oscilações que sofre um paciente com transtorno bipolar. A ausência de linearidade como um conceito estético permite a inclusão de diversos estilos, desde a história em quadrinhos feita em quadros e balões a imagens que ocupam a página toda, recriações de fotos e apropriações de páginas do diário da autora, indo além de um livro referência para a bipolaridade, demonstrando, pelas interpretações dos desenhos, como vive um paciente em seus estados maníacos até adequar-se com a medicação correta e com um equilibro interno próprio. Assim, apresenta-se uma visão além do depoimento escrito, como costumeiramente se lê em livros que tratam o assunto.
Sem medo de falar de sua própria condição, Forney produz uma interessante obra sobre as imperfeições e transtornos que uma parcela da população possui, conduzindo a trama de maneira natural, sem exagero ou uma análise erudita. Além disso, a autora tem o mérito de transformar a própria doença em um objeto de arte que também destaca seu ofício de desenhista. Atualmente, Forney encontrou equilíbrio adequado e apresenta palestras tanto sobre desenhos quanto sobre o transtorno bipolar, com depoimentos. E afirma, ao fim desta edição, estar vivendo bem consigo mesma.
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