Inspirada pelo sucesso de Stephenie Meyer e seu Crepúsculo, a produtora de TV aposentada E. L. James resolveu criar uma fanfic utilizando os elementos básicos da fórmula de sucesso presente na saga dos vampiros, supervalorizando a questão da figura masculina poderosa e escolhendo um espécime comum do sexo feminino, sem grandes atrativos ou dotes físico. Nascia Masters of the Universe, uma literatura feita por fã que obteve tanto sucesso e acessos no universo cibernético que foi editada e lançada no circuito comercial.
No início, até os nomes dos personagens centrais eram copiados, até que a transformação acometeu a “escritora”. Sua alcunha mudou, de Icy para o pseudônimo com que assina. Outra diferença básica está presente na intimidade do romance, muito mais picante do que os assexuados dramas de Meyer, mas ainda assim bastante suaves, até mesmo em comparação com os dramas folhetinescos das antigas revistas Super Julia e Sabrina. Cinquenta Tons de Cinza, publicado pela editora Intrínseca é o primeiro de uma trilogia, seguido por Cinquenta Tons Mais Escuros e Cinquenta Tons de Liberdade.
Anastasia Steele é uma estudante de literatura entediada em um emprego que é tão monótono quanto sua vida amorosa, e que chegou de forma hercúlea à maioridade sem qualquer interação com namorados. Obrigada contratualmente a ir a uma reunião com um contribuinte importante, Ana se encontra com o milionário de 30 anos Christian Grey, transparecendo involuntariamente um forte desejo sexual por sua figura resoluta e dominadora. A afetação da protagonista é maximizada pela narração em primeira pessoa. A carência da moça é tamanha que o simples pensamento relacionado à possibilidade de Christian ser gay faz ela estremecer, fazendo da personagem a vítima perfeita para qualquer desmando do rapaz.
A prostração da protagonista antes de qualquer contato físico extremo faz a possibilidade de idealização tornar-se plausível graças à irrealidade e inexperiência da moça. O relato de Anastasia se aproxima demais dos sonhos sexuais de uma senhora de meia-idade, diferente demais da figura jovial que deveria ser apresentada, levando em consideração seus 21 anos. E. L. James não consegue em um primeiro momento emular o linguajar de uma moça, uma vez que sua capacidade de imitar características distantes das suas próprias é muitíssimo limitada. O único ponto realmente verossímil dentro do jogo de sedução malfadado é a paixão causada após a rejeição primária, que agrava a situação de sua persona no romance.
A troca de mensagens após a recusa inicial do protagonista soa como artimanha de sedução barata, uma tática comum de homens comuns nada diferenciada da figura de magnata de Grey. A tentativa de sofisticá-lo não passa de um arremedo de preconceitos que fazem da figura fútil de homem rico algo maior do que o simplório cidadão, o mesmo que seria incapaz de reunir a atenção da desinteressante mulher.
A libido de Ana é quase tão fútil quanto o comportamento interesseiro que demonstra. A descrição que faz do carro luxuoso de seu “amado” quase chama mais atenção do que a artificial personalidade de Christian, exagerada ao extremo, para fazer valer seu carisma fajuto. O gosto musical do homem inclui bandas de sucesso recente e amadas por fãs de indie rock, o que acusa ainda mais o caráter de “fórmula mágica”. Além de referenciar musicistas clássicos, na tentativa vã de mostrar um sujeito meio moderno e meio erudito, demonstra-se na verdade uma face bastante vazia.
Próximo da centésima página, o paradigma da história anuncia uma mudança de postura, em que se espera ao menos uma ligeira transformação de discurso e abordagem piegas do par ideal. Ledo engano: mesmo diante dos rudes modos do homem, Anastasia segue em sua jornada, destruindo qualquer vestígio de respeito próprio. O bilionário não se esforça e o convencimento da moça é automático. Qualquer argumentação da parte dele em nada interfere na noção mórbida da garota. Logo, é mostrado a ela um conjunto rígido de regras, que visa educá-la a não agir fora do escopo de desejos de seu dominador. O conteúdo é bastante humilhante, especialmente para alguém que não conhece e não é nada afeito à cultura BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo). A personagem é tão mal construída que se surpreende com o fato do galanteador a achar bonita, mesmo após convidá-la para uma interação sadomasoquista, fazendo-a surpresa como nunca. James peca ao descrever a intimidade de Grey e Anastasia, não por apelar à vulgaridade, longe disso aliás, mas por mostrar uma interação mecânica, que incrivelmente louva ações sexuais comuns em preliminares feitas por casais ultra conservadores, distanciando-se do ideal de homem único que Grey pretensamente exala.
A literatura da autora é bastante fraca. Há um número demasiado de vícios linguísticos típicos da fala, que soam péssimos dentro do livro, além de um número exorbitante de repetições de palavras, às vezes na mesma frase, facilmente substituíveis. Em alguns pontos, a sensação é de que não houve um trabalho de revisão na transposição de fanfic para literatura formal. Outro incômodo é a demora em exibir a realidade do sexo, com passagens bastante curtas e até formais nas descrições, e um exagerado intervalo em que a personagem discute com sua amiga falando sobre a queda do tabu da virgindade – claro, sem qualquer viés de discussão, só reprisando o lugar comum. O ápice da situação é a descrição do órgão sexual masculino, comparado à dureza do aço revestido de veludo, o que afasta qualquer possibilidade de empatia da parte do leitor que tem a vida sexual minimamente ativa; além de outros impropérios, como “picolé sabor Christian Grey”, uma péssima paródia de Garganta Profunda.
A dignidade da autora começa a descer níveis mais baixos, com uma tentativa de validar argumentos feministas reverenciando a deusa interior das mulheres ao mesmo tempo que toda a movimentação de Anastasia é de submissão. É óbvio que a intimidade de uma mulher não influi e não deve influir na luta por seus direitos de igualdade e justiça. Mas os signos visuais, utilizados em uma mesma história, contradizem-se completamente e não fortalecem qualquer um dos lados, banalizando a mulher que não deveria ter vergonha de sexualizar-se – um fracasso total, visto que o que menos aparece no livro é sexo não idealizado, com o homem sempre no comando – e muito menos discutindo a possibilidade de ascensão da mulher, cuja função na obra não passa de amásia.
Uma questão aviltante gira em torno de Grey, o que fomenta a fantasia de Anastasia, James e talvez de seu público-alvo. Caso Grey fosse um homem franzino, ou pobre, ou feio, ou negro, ou suburbano – ou tudo isto junto – caso tudo isso mudasse, mas ainda permanecesse a volúpia e prazer na dor alheia, o personagem teria o mesmo impacto e poder de convencimento? Dificilmente. Assim, estereótipo de normalidade e ideal do homem perfeito são também ratificados, mais uma vez predominando uma mentalidade preconceituosa.
O enfado ao ler as longas páginas é inexorável, uma vez que a história não possui movimentações além do óbvio, repetindo sua fórmula eternamente, girando em torno de si como um cão que persegue o próprio rabo. As páginas são preenchidas com as mesmas situações abordadas antes, sem apresentar nada além do aprofundamento da submissão pouco contestada de Steele ao seu “mentor”.
O relato de Anastasia sofre o terrível viés de não ter o que comparar, uma vez que Grey foi seu primeiro parceiro sexual. Sua atenção com o homem foi demasiado, inclusive ao satisfazer os fetiches bastante comuns, que curiosamente se apresentam como um pequeno tabu, mesmo com a mente aberta do sujeito que costuma praticar bondage. A afeição do rico por ela é tanta que ele faz até um pequeno mise en scène para sua família, mais uma pequena incongruência diante de todas as atrocidades contraditórias presentes no livreto de James.
A insistência de Anastasia em clamar pela “deusa interior” chama a atenção, conseguindo o feito de ser tão enfadonha quanto as constantes trocas de email e gracejos entre os casal de protagonistas, fazendo uma força abissal para tornar o diálogo natural, fracassando obviamente, dada a artificialidade do discurso, fingido em cada palavra. Exibe-se uma pobreza argumentativa atroz, que em vão tenta validar o feminismo utilizando uma prática que basicamente contraria todos os seus preceitos.
Há milhares de motivos para fazer um leitor se afeiçoar a um produto. Categorizar um leitor por ter gostado ou não de (ou ter se identificado por) algo é um exercício fútil, explicado pelo conceito de que gosto é algo muito volátil. O mau gosto é uma caracterização excludente por sua nomeação, define pouco e tem mais a intenção de categorizar pejorativamente, sem senso crítico na maioria dos casos.
A análise de Cinquenta Tons de Cinza passa da expectativa de escrito libertário para algo que reforça estereótipos na jornada de Steele rumo à aceitação do gênero que secularmente oprime, tentando falaciosamente citar chavões feministas. Toda a enrolação do romance resulta em uma discussão fútil a respeito da obediência ou não da personagem, que muito antes de dar sua palavra final já se mostrou bastante subserviente. As últimas palavras do livro exibem a questão de qual seria a dor maior: dos chicotes e brinquedos sexuais ou da solidão que habitaria a rotina de Anastasia caso não tivesse consigo o homem de suas ações. O furor causado por conservadores, que tentam proteger seus adeptos de uma possível influência da novela, não deveria acontecer, pois todo o sexo mostrado na obra é motivo para representar exatamente este público, com transgressões rasas e em nada relacionadas à realidade.
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Independente de compartilhar o mesmo ponto de vista, texto muito bem escrito e bem fundamentado, deixando as percepções pessoais em segundo plano para provar, objetivamente, que esse livro é muito, muito ruim!
Corajoso Filipe, corajoso você!!
Minha recompensa virá do alto, Luci.