Leviatã. Rima com amanhã, exatamente sobre o que trata este filme. O futuro e a angústia das incertezas a partir da insegurança que o amanhã confere. Quanto a essas incertezas, o filme discorre suas razões de cabo a rabo, desde o que move a vida dos habitantes de lugar-nenhum no fim do mundo – o mundo deles no qual só os “nativos” parecem ter acesso e conhecimento de como sobreviver em bando por lá – até o ambiente, que, por mais lúdico e inspirador, chega a sofrer influência e alteração pelo homem pelo simples fato deste viver em determinados recantos da Terra, culminando em caráter de parasita, muitas e muitas vezes. A troca de influência entre o social e a ambiência é a coluna dorsal de um atestado felino das relações humanas – astuto e expressivo, ainda que discreto, diga-se de passagem. É como se o magnífico turco Era Uma Vez na Anatólia fosse (re)filmado na ótica implacável e cética do francês Michael Haneke, e nem é preciso medir as palavras para atestar tal delírio alternativo.
Bobagens (e uma atmosfera semi-emergencial que remete muito a Onde os Fracos Não Têm Vez) à parte, Leviatã adere à eterna moda soviética de ser realista a ponto da realidade ser surreal, e precisar ser ficção na tela de Cinema, exigindo do público uma fuga na ilusão para esquecer que o real pode ser tão mundano e frio, com certeza. Os cineastas Sergei M. Eisenstein e Vsevolod Pudovkin já faziam isso há quase um século, em Potemkin e A Mãe. Essa total apropriação da realidade pelas mãos da ficção, e todo o resto, pode ser percebido nos primeiros 15 minutos de Leviatã, contadinhos. Filmes de respeito são assim mesmo.
O filme é um relato de um presente regido por suas pontas, um momento atual resultado e estopim do que já foi e do que será, uma não-oficial adaptação literal ao cinema, com veias de forte e imponente literatura russa, da melhor qualidade, a tanger aspectos de reinações da história, triste e contemplativa, moderna e histórica no mesmo nível, e ao mesmo tempo. O filme é uma enorme metáfora indireta só aos cegos que não querem ver, para com algo maior ainda: a Rússia e suas fundações refletidas no comportamento da civilização. Leviatã é um filme universal e com situações universais que, por acaso e entre aspas, calha de ser russo. Sabe as famílias despejadas no Rio de Janeiro, movidas para não enfeiarem os arredores da Copa de 2014? Aqui, essas famílias falam russo, os políticos têm cara e religião hipócrita, e as resoluções para os abusos e pressões de autoridades são expostas sem medo – essa história poderia estar em qualquer jornal do Brasil se manchetes não vendessem devaneios.
Do suspiro “Toda minha vida está aqui” se resume a sensação de uma família de advogado reunida ao redor de uma mesa, o olhar geral num quadro pagão, com seu habitat estampado entre a moldura e prestes a ser corrompido num país gigante em que a pequenez se faz na ação jurídica de quem comanda suas tangentes. O cineasta Andrey Zvyagintsev vai fundo sabendo onde termina o abissal e começa o inferno, e desbrava tradições de um povo e de uma classe (baixa, claro) ignorando limites sensoriais – cada rosto no filme é uma bomba a explodir num barril de pólvora cercado por rochas milenares e um mar de lágrimas, lágrimas daqueles que o olham sem saber se almejam nadar para longe ou limpar com suas ondas o que infesta a pátria das pessoas que só querem viver em paz. De pequenos grandes momentos nos quais o silêncio grita tanto quanto as discussões, Leviatã admite que não há futuro respeitável sem respeitar o histórico do que poderia consagrar o estado atual das coisas. Sim, é uma obra de hipóteses. Alice no País das Maravilhas no mundo real – é impossível saber qual cabeça será cortada antes do fim, talvez todas. Destaque para a atuação coletiva, gloriosa.
Com uma míngua de esperanças, a família se reforça para cantar ao político que rouba seu sono o refrão de Apesar de Você, de Chico Buarque, através de atos e relatos contra o abuso político e a favor da boa e velha resistência existencial da parte de baixo da pirâmide, sempre e ainda sofrida. E assim como os personagens que são maiores que seus dilemas e ensejos de sobrevivência, o filme se expande além de suas personas, locais e iluminação, à luz de um prisma enorme de interpretação ao gosto do público, cortesia do cineasta Andrey. Mesmo com a falta de uma alegoria épica aos moldes de cineastas como Ceylan ou Lav Diaz, e com algo mais prático ao estilo de Abbas Kiarostami e do próprio Andrey, Leviatã, onde nada é gratuito e toda ação e reação tem seu pesar, se consagra como narrativa mais que sólida, exemplar, e ainda nos oferece a obrigação, enquanto público, de prover conclusões ao filme. Uma obra complexa, mas com uma história bem aberta, de propósito, dada a revisões se não for pedir muito. Nós somos o ponto final nesse espelho interativo ao lado de cá da tela, onde, lá e cá, a corrupção política é natural e inerente ao espírito humano (pelo menos enquanto a ficção não prova o contrário). Daí o esforço pelo amanhã, num mundo dividido entre o natural e o mecânico.