Crítica | O Espião que Sabia Demais

Vamos deixar bem claro, logo no início do texto, a informação mais importante sobre O Espião que Sabia Demais: trata-se de um filme absolutamente dedicado à espionagem.

Já sei o que você pode estar pensando.

“É óbvio que ‘O Espião que Sabia Demais’ é sobre espionagem! Todo mundo sabe disso!”.

Sim, meu amigo. Mas é justamente aí que você pode se enganar.

Quando se fala em espionagem no cinema, a associação mais comum é com filmes da série 007 ou, na última década e meia, com os episódios das franquias Missão Impossível e Bourne. Ou seja, filmes com algum – pouco – conteúdo relacionado à espionagem e imensas doses de ação.

“O Espião que Sabia Demais” não poderia ser mais diferente dos exemplos citados acima.

Gosta de tiroteios? “O Espião que Sabia Demais” não tem nenhum.

É fascinado por perseguições de carros em alta velocidade? Em “O Espião que Sabia Demais”, não há uma sequer.

Aprecia muita pancadaria e explosões? “O Espião que Sabia Demais” passa longe disso tudo.

Agora que as ressalvas foram feitas e você está advertido, vamos direto ao ponto: “O Espião que Sabia Demais” é uma das melhores películas lançadas nos últimos tempos.

O filme, como se sabe, é a adaptação do romance homônimo, escrito por John le Carré – um dos mais populares autores de romances de espionagem, responsável por títulos como O Espião que Veio do Frio, o Alfaiate do Panamá e O Jardineiro Fiel. Ele mesmo, ex-espião inglês.

Na trama, ambientada em 1973 – portanto, durante a Guerra Fria –, logo de cara somos informados que um dos integrantes do Circus, o alto escalão do serviço secreto da Inglaterra, é, na verdade, um agente duplo que vende informações para a KGB, a agência de inteligência da falecida União Soviética.

O personagem George Smiley (Gary Oldman), que curiosamente havia acabado de ser demitido do Circus, é contatado diretamente pelo gabinete do primeiro ministro e recebe uma missão: investigar o caso para descobrir quem é o traidor.

E é a partir daqui que o diretor sueco Tomas Alfredson – da excelente versão original de Deixe Ela Entrar – imprime seu ritmo: toda a trama é construída lentamente. Passo a passo. Não há cortes bruscos, nem tempo narrativo acelerado. Pelo contrário. A história flui num ritmo caudaloso que muitos, certamente, poderão considerar arrastado.

Mas não caia nessa.

Alfredson sabe exatamente o que está fazendo. Ele dita um ritmo cadenciado e contínuo – com algumas idas e voltas no tempo – para construir um mistério que é impenetrável para quem está assistindo. Acredite: a menos que tenha lido o livro, você dificilmente descobrirá quem é o traidor antes do filme chegar ao fim.

Por ter esse andamento, as cenas de maior violência – sim, elas existem – são impactantes quando surgem na tela.

E aqui há um ponto muito importante: este filme é exigente com quem o assiste. Se o espectador resolver deixar a sala por dois minutos para ir ao banheiro ou comprar pipoca, corre o imenso risco de perder o fio da meada e ficar confuso em relação à trama. Logo, faça tudo isso antes do filme começar. “O Espião que Sabia Demais” pede atenção absoluta.

Os planos são longos e, em boa parte das vezes, estáticos. Os movimentos de câmera, quando acontecem, são incisivos, mas ao mesmo tempo discretos: aproximações , afastamentos e deslocamentos laterias.

A composição é primorosa. Cada cena é construída com grande cuidado. A fotografia é do suíço Hoyte Van Hoytema, que já havia trabalhado com Alfredson em “Deixe Ela Entrar” e também cuidou da imagem de O Vencedor. Perceba como o trabalho dele, associado ao figurino e à cenografia, remetem imediatamente ao visual europeu da década de 1970.

Em alguns momentos, a impressão que se tem é que estamos assistindo – pelo menos em termos estéticos – imagens de O Dia do Chacal, de Fred Zinnemann – não por acaso, adaptação de outro clássico da literatura de espionagem, este de Frederick Forsyth.

Atenção especial à sede do então MI6 – atual SIS, sigla que designa a inteligência britânica. O marrom e seus matizes, além das prateleiras, mesas e arquivos de pastas dominam o ambiente, dando ao local uma inevitável cara de repartição pública. O estoicismo de alguns planos é reflexo da imensa burocracia que aquele local deixa transparecer.

E no meio de um time espetacular de atores – John Hurt, Colin Firth, Mark Strong, entre outros – Gary Oldman rouba praticamente todas as cenas. É impressionante a postura de contenção que ele imprime ao espião George Smiley. O personagem, mesmo nos momentos de solidão em casa, parece viver num mundo de autocontrole e ordem. Em apenas um ou dois momentos do filme ele ameaça ceder para, logo em seguida, recuperar o controle absoluto que tem sobre si mesmo.

E se você acha impossível associar Julio Iglesias – ele mesmo. Aquele cantor espanhol brega que sua avó provavelmente adorava – à espionagem, espere até o fim do filme. Você vai se surpreender.

E aqui, ao fim do texto, vale relembrar a explicação do início: “O Espião que Sabia Demais” é um filme de espionagem.

Não de ação.

Acredite: neste caso, isso faz toda a diferença.

Texto de autoria de Carlos Brito.

Comments

13 respostas para “Crítica | O Espião que Sabia Demais”

  1. Avatar de Rafael Moreira

    Cara, ta aí um filme que eu não veria, por vontade espontânea. Porém com essa excelente resenha, to indo pro cinema, antes que saia.

  2. Avatar de Jurandir Neto
    Jurandir Neto

    O filme realmente é meio chato, diria que é quase didático, só pra quem gosta/estuda o tema, ou é um admirador das técnicas cinematográficas. (meu caso) Fora isso não gostei, BUT é um pecado falar mal, =/

  3. Avatar de Rodrigo "Nhá"

    Parabéns Carlos, você escreve bem demais!

    Com certeza verei o filme e voltarei aqui para dizer se acho o mesmo que você a respeito dele.

  4. Avatar de Carlos Brito
    Carlos Brito

    Olá, senhores.

    Obrigado pelos comentários sobre o texto.

    Espero suas impressões sobre o filme.

    Cinema tem que ser assim mesmo: com debate e troca de ideias.

    Jurandir, não há problema nenhum em falar mal sobre um filme. As percepções sobre uma forma de expressão artística – seja filme, peça, livro, quadrinhos – são sempre muito pessoais.

    O importante é debatermos.

    Grande abraço!

  5. Avatar de Júlio
    Júlio

    Não tinha lido nada a respeito sobre o filme, era natural não me interessar por ele qdo vi o poster. Agora terei que correr atrás e tentar arrumar alguma sala pra poder assistir isso.

    Carlos matando a pau em suas críticas!

  6. Avatar de Guilherme
    Guilherme

    A crítica é de fato excelente! Parabéns!

    No meu caso foi o oposto: me interessei pelo filme, fui ao cinema, e saí da sessão com interrogações na cabeça. Realmente o filme é bastante complexo, o que demanda atenção redobrada; e eu posso ter pecado neste quesito.

    Pretendo assistí-lo novamente, com um novo olhar sobre o filme.

  7. Avatar de Vinícius
    Vinícius

    A espionagem, ao contrário das maiorias dos filmes, é chata e burocrática, a ação somente acontece em casos isolados e muito raramente. Então, o filme cumpre seu papel perfeitamente.
    Recomendadíssimo.

    1. Avatar de Jurandir neto
      Jurandir neto

      e verdade.

  8. Avatar de Aoshi-Senpai
    Aoshi-Senpai

    Carlos;

    Uma das criticas mais bem escritas do Vortex.
    Hoje, nos traillers que antecedem a exibição da sessão de cinema, este filme apareceu. Atento, prestei atenção ao vídeo e virei para o lado empolgadaço para marcar a próxima ida ao cinema com minha namorada. Quando virei, empolgado para contar que queria ver o filme, ela estava com aquela carinha de “boooooring”…
    Até agora, não sei dizer porque o filme me atraiu, mas com certeza vou conferir, se o GNC quiser trazer o título para Joinville.

    Obrigado pela dica;
    🙂

    Ja ne!

  9. Avatar de Pablo Grilo

    O filme tem ótimas atuações, direção de atores, fotografia, som e um roteiro regular.

    O problema, pra mim, é justamente o roteiro e a edição: enquanto o primeiro, apesar de regular é totalmente confuso, o segundo deixa a narrativa mais complexa, o que torna o filme difícil de se entender. Fora a dificuldade de compreender todos os nomes e associá-los aos atores e locais, eu vou discordar do Carlos, a narrativa não se tornou arrastada, é verdade, se tornou lenta demais, desinteressante.

  10. Avatar de zeca
    zeca

    Filme chato e pretensioso. Parado, mudo, enfim, algo reservado para quem aprecia obras herméticas e indecifráveis para quem não estuda esse tipo de coisa. O cinema não foi feito para cansar ninguém, tem a obrigação de retribuir o ingresso com emoção, com alegria. Chata, chega a realidade. O diretor dessa coisa enjoada devia pagar umas aulas para o Coppola.

    1. Avatar de Pablo Grilo

      Coppola, o mesmo que fez Jack? Ah tá…

  11. Avatar de marcio silva de almeida

    John Le Carré é expert quando se trata de “Guerra Fria”. Uma das melhores personalidades no assunto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *