Para ler ouvindo: Black Sabbath – End of The Beggining
Nunca voltei a entrar no mar após quase me afogar quando criança. Foi a primeira experiência frágil que sofri sem que minha mãe fosse capaz de me ajudar. Eu ainda não sabia que a vida era uma sucessão de ações de quase-morte ou quase-vida. Espanta-me, portanto, anos depois, agora adulto, estar com os pés na areia, aguardando as ondas me abraçarem.
Quando N. me disse para mudarmos de cidade, pois o mundo ficaria mais fácil com o novo emprego, eu achei, por um curto período de tempo, que ela estaria em minha vida para sempre. Que brindaríamos a existência a cada dia, enterraríamos muito dos nossos entes em conjunto, sepultura após sepultura, um ao lado do outro. Mas, em minhas mãos, sobraram apenas os dedos e uma única taça de cristal que, de maneira patética, será dedicada a um novo ano enquanto adentro o mar dando saltos a cada onda que virá.
Nós estivemos aqui uma vez. “Larga de ser medroso, eu estou com você”, ela me disse. Mas permaneci no hotel, sozinho, enquanto ela, após uma discussão de bater portas, foi comemorar o ano novo em oferendas ao mar. Ela voltou quando os fogos tinham se dissipado, o olhar frio de quem não aceitava meus abismos. “Você é um babaca”, e deitou na cama com o vestido branco.
Escolhi este mesmo local como um desafio. Para provar que ela estava errada diante de meus medos. Mas, provavelmente, ela riria de mim. “Abram alas para o senhor dramático, ele precisa de atenção”. Ela sabia ser cruel quando contrariada, mas creio que o fim transforma todas as relações em brumas.
Os casais passam por mim com suas crianças birrentas. A cada passo dado na areia, os smartphones brilham pela praia para registrar os segundos. Não há nada que se deva manter para o futuro, eu penso, mas eles não param. Pergunto-me, diante de um mundo efêmero, se os registros são uma tentativa de traçar um caminho. Pedaços de pão na estrada que significam sequência e continuidade. Vimos, vivemos e vencemos. E imagino um corvo seguindo o caminho dessa estrada imaginária, comendo as trilhas de pão como um prenúncio para o caos. Eu rio pensando no quanto eles ficariam desesperados se perdessem estes registros preciosos.
Uma garota esbarra em mim, a taça cai no chão. Ela pede desculpas, sorri, pega a taça, nossas mãos se tocam por um instante. “Um feliz ano novo para você”, diz, e seu sotaque estrala ao som das palavras. “Feliz para você também”, respondo com o mesmo som estralado. Permaneço sibilando a palavra feliz para ninguém até perceber o quanto isso soa idiota. Feliz. Feliz. O que estou fazendo aqui?
Eu vim para enterrar um morto. Para sepultar trezentos e sessenta e cinco dias de merda pelos quais passamos. Como um mártir escolhido pelo meu povo, eu desejo que minhas preces sejam atendidas e que tudo pareça diferente quando o sol estiver de novo queimando nossas retinas. Dois mil e dezesseis foi um ano tomado pela loucura. Descemos a um novo círculo do inferno mas não há Alighieri como narrador desta jornada. Sobrevivemos de nossas ilusões.
O bem e o mal sobre a terra como cura ao tédio enquanto tudo se desmancha. Estamos rindo, entupidos até o rabo com ansiolíticos, ouvindo fitas de gurus paraguaios dizendo que tudo ficará bem. A mentira contada mais de uma vez para evitarmos o fato de que estamos fodidos por completo.
As horas informam que em breve um novo ano desponta no horizonte. No ar, existe uma eletricidade invisível que transforma a ilusão em esperança. Eu me imagino saltando cada onda como um astro de rock cujos movimentos são louvados pelo público. Cada movimento ruim sendo reprisado em minha memória como se pudesse ir embora pelo mar: pai, N., e cada partícula infeliz daqueles que me cercam.
O universo realiza mais uma de suas voltas paquidérmicas, situando o espaço, o sol, e toda a artilharia espacial em um jogo que faz do futuro um novo presente. Em meio aos fogos que subirão aos céus como deuses mortos, demonstrando talento para a pirotecnia em meio ao caos, nasce um novo momento. Enquanto as mãos estão ao alto pedindo preces, as cordas invisíveis continuam nos pescoços. Em largas passadas a distância, o carrasco se prepara para a execução.
Que conto gostoso de ler. O ritmo das palavras que você escolheu para desenhar este clima melancólico foi simplesmente perfeito. Tem tanta riqueza de pensamento e há um tom de desprezo tão ácido que cheguei a ficar incomodada. A verdade que a ficção transbora é algo incômodo. Não terminei um relacionamento, mas 2016 foi um ano que tentei passar anestesiada. Uma dose para acordar, uma para dormir, algumas para tentar manter a indiferença. E você acha que ainda assim dá para ignorar todo o caos? Não dá!
Como você bem escreveu:
Nossas mentiras registradas para a posteridade. Migalhas aos corvos.
E seguimos bailando como marionetes.
Parabéns pelo texto!