Crítica | Spartacus

Spartacus é um ensaio frágil sobre as possibilidades de um épico formalista. E quando me refiro a isso, quero ascender a importância da forma, da escala, das dimensões de um visual, e não necessariamente das dimensões da história, de um estilo de direção ou atuação. Stanley Kubrick tenta malabarizar tudo isso por mais de três horas, mas a forte materialidade desse épico americano (sobre Roma) fala mais alto. Do império icônico à beira da bacia do mediterrâneo onde um escravo, um gladiador execrado lidera uma revolução política, nascem as mesmas intenções que permeiam Ben-Hur (1959), Cleópatra e Jasão e os Argonautas (ambos de 1963), com todos deixando a ação histriônica e a reciclagem da iconografia desse simbolismo ultraclássico falar mais alto, gritar na tela e nas caixas de som, em detrimento de se alcançar um frescor narrativo nunca antes visto, ou ao invés de escalonar o poder da palavra, é quisto focar quase que puramente no poder de um símbolo histórico e do que se pode extrair visualmente disso, nada muito além. Épicos lidando com sua farta energia de forma unilateral, recreativa com a nossa visão e barulhenta aos nossos ouvidos.

Esse texto portanto não vai contra o Épico e a favor das pequenas histórias (Morte a Ben-Hur, longa vida a nouvelle vague!), não, mas cobiça reconhecer suas diferenças e grandezas e unificá-las num exemplo que parece ser um dos mais acessíveis: A trilogia O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Três Épicos ambiciosos pelas imagens e a glamourização da ética e da antiética, da corrupção e da criminalidade de uma forma nunca antes vista, com o fotógrafo “rei das sombras” Gordon Willis dando o tom da construção visual do universo dos Corleone, mas num paralelo exato ao poder de uma narrativa revolucionária, de um jogo de palavras tão forte e inesquecível quanto o visual, e com personagens tão complexos entre si quanto um ângulo dourado de câmera muito bem planejado. Essa trilogia e tantos outros exemplos de dramaticidade pontual se configura, então, feito um verdadeiro e maiúsculo Épico, tratando-se (na sua concepção e na nossa interpretação) de um Épico completo, tendo a sua epicidade presente e vibrante em todos os aspectos de uma grande (e absoluta) experiência cinematográfica. Agora, vamos falar do outro lado da moeda. Vamos pensar Spartacus.

O ano era 73 a.C, e o império romano estava consolidado, vencendo meio mundo de batalhas com tecnologia e estratégia militares ímpares. Criou-se, então, em ordem de inúmeras desigualdades sociais, uma legião de escravos normalmente feita por todos aqueles perdedores das guerras que Roma venceu (estimativas modernas sugerem que, na época, havia um escravo para cada três pessoas livres, destinados a serem servidores domésticos, escravos (as) sexuais ou, como no caso do lutador em questão, gladiadores). Kubrick parece tentar traduzir numa gama de cores saturadas e situações emocionantes e frívolas toda aquela tensão social, relatando o destino de personagens relacionados com base numa história só e numa narrativa simples e humilde que de revolucionária tem só a casca, mas muito bem amparado por uma parte técnica impecável (talvez seja essa então a maior contribuição dessa Hollywood mais nababesca, sempre revolucionando a técnica dos seus espetáculos mas deixando-se cegar facilmente por todas as fascinações que a tecnologia lhe traz).

A visão do cineasta parece ter certa dificuldade em equilibrar a história de proporções bíblicas com uma narrativa realmente forte, que costure todas questões subjetivas e explícitas de um arco histórico tão notório para com um cinema americano que sempre se apropria da identidade de outras culturas. Sente-se que Kubrick sabe a fantasia que deve mostrar, mas não o que está abaixo dela, numa abordagem por vezes superficial dos clássicos tempo romanesco – algo tão diferente do ótimo Barry Lyndon, mas que viria anos depois. No filme protagonizado por outra lenda, o ator Kirk Douglas e um elenco de peso atemporal, nota-se também como Spartacus na sua reconstituição histórica chega com quase nenhum(a) personagem negro ou abertamente gay, algo completamente mentiroso ao meio escravocrata e diversificado daqueles idos, caso o realismo estivesse realmente ligado a visão de Kubrick para a jornada desse herói revoltado – um espécime de William Wallace do filme de Mel Gibson, mas sem tanto ufanismo patriótico esguichando a cada frame do filme mais naturalista, sujo e corajoso e menos tecnicista e carnavalesco que Coração Valente termina sendo.

Ora, é claro que os sensores de 1960 eram bem mais rígidos à produção artística de cinquenta, sessenta anos atrás, o que justamente impediu o roteiro de Dalton Trumbo – primeiro filme a ser creditado aós entrar na lista negra do macartismo – em Spartacus de imprimir uma cruel realidade social, fazendo-o apelar para uma releitura mais apoteótica e aventuresca de um período longo e bem conturbado da história da humanidade. De acordo com o próprio Kubrick: “Foi o único dos meus filmes sobre o qual não tive controle total”, batia no peito o cineasta meio que tirando seu cavalo da chuva sobre o que o filme acabou tendo de bom, e de questionável. Corta agora pra 2015.

Outros tempos, as mesma histórias, claro. Chega George Miller com Max Mad: Estrada da Fúria, assumindo de vez e sem vergonha ou pedantismo nenhum toda a carga de formalismo que um épico de Hollywood pode ostentar, sem perder sua pose e a sua capacidade de reformulação de fórmulas, como a jornada do herói onde a Furiosa de Charlize Theron está inserida, aqui revirada e posta em cheque pelo ambiente caótico da personagem. Reparem que Miller ao contrário do Kubrick de Spartacus não usa em momento algum esse formalismo como fim absolutista, mas como meio de manobras narrativas dramáticas para se extrair desse quarto Mad Max que muitos podem acusar de puramente visual, algo mais e maior que apenas outra mise en-scène grandiloquente. Talvez seja isso que faltou e ainda falta para outros épicos de grandes escalas e sons retumbantes: Algo a mais.

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