Brian De Palma está, por incrível que pareça, mais contido aqui. Algo notável após os grandes excessos que foram os magníficos Carrie e Trágica Obsessão, dois anos antes. A Fúria é uma bomba-relógio mascarada de thriller paranormal – e você deveria dar graças a Deus por viver num mundo onde existe um suspense paranormal dirigido por Brian De Palma, amigo(a). Na aventura de um pai tentando recuperar seu filho dotado de habilidades parapsicológicas (quase um Jean Grey dos X-Men, ou melhor, a estranha sanguinolenta de Stephen King) é desculpa de mestre para usar e abusar, revirar e cavoucar quaisquer significações possíveis nas vicissitudes trilhadas pelo personagem de Kirk Douglas, atuando em modo automático entre disfarces detetivescos (a sequência inteira dentro de um pobre apartamento de idosos é hilária) e uma pinta de galã de filme de ação barato captado pela câmera nervosa de um cineasta inquieto como os gloriosos anos 70 (e 80) merecia, assim como merecemos no século XXI, talvez mais do que nunca, atulhado de abstrações temáticas e sutilezas enfadonhas, fartamente incomparáveis a tudo o que já nos foi feito, feito o filme que aqui temos o prazer de refletir, sobre.
Vamos ao que interessa: A Fúria é o filho bastardo e mais sujo de Um Corpo que Cai, um dos diamantes de Alfred Hitchcock, como todo bom ou ótimo suspense dos anos 60 e 70 não conseguiram escapar de ser. É também De Palma indo, confiante e novamente, contra qualquer naturalismo a fim de criar sua própria difusão criativa e afetada de uma realidade artificial inadvertida, caótica, assombrosa e organizadamente manipulada dentro de um estúdio. Pra muitos, isso é sinônimo de loucura, para o cineasta, é cinema. O cineasta filma a loucura, sempre a manejou, e sendo uma espécie de Hitchcock mais pop, permite-se trilhar caminhos mais contemporâneos na exploração de seus temas, encarnando neles não apenas suspense e mistério, mas vários signos inconfundíveis do entretenimento hollywoodiano que muito raramente se via nos filmes do gênio inglês, como explosões, tiroteios, sanguinolência deliberada e até mesmo poderes psíquicos. Elementos mais apelativos às grandes audiências, ou num termo cultural também muito mais contemporâneo, às audiências de massa fomentadas pela indústria cultural.
Hitchcock inclusive habitava o plano mais realista das coisas, excepcionalmente mais autoral sem espaço ao exagero ou a um improviso categórico, de certa forma. Enquanto que em A Fúria, o diretor seguia provando habitar o pessoal com um pé nas expectativas do grande público. Vide as compilações de cenas divertidíssimas que participam da trama de todas as suas conjecturas audiovisuais ao longo de sua carreira, em paralelo com momentos bem intimistas, típicos do cinema do cara também, principalmente no filme em questão; um filme que depende intensamente do poder da montagem para tornar-se imprevisível, fator que, em Fúria, é excepcional como todo o resto consegue ser, em harmonia. De Palma, um dos grandes inimigos dos puristas e ao mesmo tempo dos naturalistas do cinema, dificilmente nos decepciona, e mesmo quando o mestre usa suas ferramentas e subverte nossas expectativas para o bem, ou para o mal, é claro que isso também seria proposital a nós, pobre público que por fim somos.
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