Campos de Carvalho não é um escritor comum, e é por isso que o lemos. Apesar de o autor ter escrito mais textos, ele reconhece apenas quatro romances como suas obras legítimas, Vaca de Nariz Sutil, em um excelente trabalho da editora Autêntica de relançar as suas obras (Carvalho faleceu em 1998), é um deles. Neste livro, tratamos sobre os vestígios da guerra.
O romance acompanha um veterano de guerra condecorado, sem qualquer nome, frustrado, com memórias violentas sobre o passado e perdido na vida. Ele, que conta a história em primeira pessoa, divide um quarto de pensão com um surdo-mudo, Aristides, próximo a um cemitério. Lá conhece o zelador e sua filha, Valquíria, ao qual se afeiçoa.
Lido como surrealista ou non-sense, a certeza é que o autor pode causar desconforto à primeira leitura devido à forma incomum ao qual conduz a trama; concentra-se nos abstracionismos, usos de filosofias catedráticas e cotidianas, epifanias, referências à História da Arte ou Antiguidade Clássica, fluxos de consciência se chocando com qualquer informação e o mundo em si, a única porção física que pode garantir a segurança do leitor, despedaçado, fragmentando-se assim como a consciência de seus personagens.
Mesmo com todas as características incomuns que citei acima, o que Carvalho ensina é que um bom escritor tem que ter domínio sobre seu próprio texto e as escolhas narrativas que faz. Por isso, seu êxito é ordenar o próprio caos nas páginas. Mesmo questionando a sanidade do narrador de A Vaca de Nariz Sutil, sentimos a lucidez que impulsiona a leitura, o que vaga é o pródigo fluxo de consciência dele; interfere sobre todos os acontecimentos, questiona o presente, desanda em referências pessoais e resgata o passado bélico como uma ferida nunca fechada.
Narrador dúbio, desconfiamos se tudo não passa de um sonho de alguém sedado por sua sobrevivência à guerra (aliás, em certo ponto se intitula herói sarcasticamente, como se o combate fosse tão surreal quanto o fluxo desordenado de suas memórias). Outra característica é o niilismo presente até o fim do livro. O personagem encara seu fracasso e caminha até ele sem se importar; não lhe cabe questionar ou mudar os acontecimentos, apenas Valquíria foge à realidade porque é irreal. Ou será que é irreal porque é real? Nunca saberemos.
Livro para ser lido mais de uma vez, como quando observamos as nuvens e tentamos acertar as suas formas várias vezes. Em cada uma delas, quem sabe acertamos? A graça é ler de novo.
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Texto de autoria de José Fontenele.