Tag: Campos de Carvalho

  • Resenha | A Chuva Imóvel – Campos de Carvalho

    Resenha | A Chuva Imóvel – Campos de Carvalho

    A Chuva Imóvel (Autêntica), de Campos de Carvalho, é o romance mais filosófico e poético dos quatro que o autor assina. Com capa dura e novo projeto gráfico pela Autêntica, “A chuva imóvel” continua A Lua Vem da Ásia e A Vaca de Nariz Sutil (“O púcaro búlgaro” será o último lançamento), no projeto de relançamento dos romances do autor mineiro que viveu em São Paulo e Rio de Janeiro.

    A trama acompanha a história de André Medeiros e sua irmão gêmea, Andréa, que têm um relacionamento incestuoso. Após as mortes do irmão e do pai, André narra, como um Dante sem qualquer guia, uma descida febril até seu inferno interior, no qual acaba por lutar com o Diabo – ou, nas suas palavras, “a Coisa”. Nós, os leitores, somos como um psicanalista ouvindo aqueles relatos (alucinações?) incomuns, mas interessantes.

    Campos de Carvalho é ordenado como autor nonsense, surrealista, onírico. Em “A chuva imóvel”, temos tudo isso encharcado por uma fina filosofia existencial. André é, como explícito pelo próprio narrador-personagem, um centauro que cavalga um cavalo. A imagem incomum e disforme dá uma pista do romance: um homem atormentado que experimenta uma sensação de estar sobre si mesmo, um nível de deslocamento do próprio corpo que o permite transportar o passado ao presente por meio de um discurso interior. Tudo para explicar a nós, os ouvintes-leitores, a relação incestuosa com sua irmã: Andréa.

    O efeito de estar sobre si mesmo lembra o objetivo do machadiano Brás Cubas, que, morto e desprendido da consciência de viver em sociedade, desata seus verdadeiros sentimentos de quando era vivo. André busca o mesmo, mas, como se sofresse de distúrbio psicológico por conta de auto-penitência, cria uma espécie de consciência sobre a própria consciência, uma sandbox (na programação, um ambiente de teste que isola mudanças de um novo programa) no ambiente cerebral que o permite contar sobre o passado, sem, contudo, reviver todos os sentimentos destruidores que advém do exame pleno de si mesmo.

    Nós somos o ouvinte. Nós somos o leitor sobre o centauro que está ao cavalo. Acompanhamos todos os fatos que, por vezes físicos, por vezes abstratos, são construídos a partir do exame do que restou em André: a culpa. Contudo, as cortinas que escondem o potente desejo afetivo pela irmã são descortinadas devagar, solenes, como se o personagem criasse um gatilho para todos os seus atos. Humano, André se justifica com o que por vezes é notório no mundo: o desejo é algo inexplicável.

    Também André é um homem inexplicável; um sujeito que tenta refazer a si mesmo a partir do que sobrou de si além da culpa: um filete de liberdade. Da mesma forma, Campos de Carvalho é um autor emancipado, um homem que escolhe o abstrato e o surreal como metáfora do caos que por vezes ordena a vida dos que andam pela terra. Viva Campos de Carvalho e seu nonsense que nos aproximam do Homem, esse desconhecido. Livro muito recomendado, mas se for sua primeira vez com o autor, leia “A lua vem da Ásia”, primeiro. Montar um centauro a cavalo não é nada fácil da primeira vez.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: A Chuva Imóvel – Campos de Carvalho.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram.

  • Resenha | A Vaca de Nariz Sutil – Campos de Carvalho

    Resenha | A Vaca de Nariz Sutil – Campos de Carvalho

    Campos de Carvalho não é um escritor comum, e é por isso que o lemos. Apesar de o autor ter escrito mais textos, ele reconhece apenas quatro romances como suas obras legítimas, Vaca de Nariz Sutil, em um excelente trabalho da editora Autêntica de relançar as suas obras (Carvalho faleceu em 1998), é um deles. Neste livro, tratamos sobre os vestígios da guerra.

    O romance acompanha um veterano de guerra condecorado, sem qualquer nome, frustrado, com memórias violentas sobre o passado e perdido na vida. Ele, que conta a história em primeira pessoa, divide um quarto de pensão com um surdo-mudo, Aristides, próximo a um cemitério. Lá conhece o zelador e sua filha, Valquíria, ao qual se afeiçoa.

    Lido como surrealista ou non-sense, a certeza é que o autor pode causar desconforto à primeira leitura devido à forma incomum ao qual conduz a trama; concentra-se nos abstracionismos, usos de filosofias catedráticas e cotidianas, epifanias, referências à História da Arte ou Antiguidade Clássica, fluxos de consciência se chocando com qualquer informação e o mundo em si, a única porção física que pode garantir a segurança do leitor, despedaçado, fragmentando-se assim como a consciência de seus personagens.

    Mesmo com todas as características incomuns que citei acima, o que Carvalho ensina é que um bom escritor tem que ter domínio sobre seu próprio texto e as escolhas narrativas que faz. Por isso, seu êxito é ordenar o próprio caos nas páginas. Mesmo questionando a sanidade do narrador de A Vaca de Nariz Sutil, sentimos a lucidez que impulsiona a leitura, o que vaga é o pródigo fluxo de consciência dele; interfere sobre todos os acontecimentos, questiona o presente, desanda em referências pessoais e resgata o passado bélico como uma ferida nunca fechada.

    Narrador dúbio, desconfiamos se tudo não passa de um sonho de alguém sedado por sua sobrevivência à guerra (aliás, em certo ponto se intitula herói sarcasticamente, como se o combate fosse tão surreal quanto o fluxo desordenado de suas memórias). Outra característica é o niilismo presente até o fim do livro. O personagem encara seu fracasso e caminha até ele sem se importar; não lhe cabe questionar ou mudar os acontecimentos, apenas Valquíria foge à realidade porque é irreal. Ou será que é irreal porque é real? Nunca saberemos.

    Livro para ser lido mais de uma vez, como quando observamos as nuvens e tentamos acertar as suas formas várias vezes. Em cada uma delas, quem sabe acertamos? A graça é ler de novo.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Vaca de Nariz Sutil – Campos de Carvalho.