“A história é dura para com os seus anônimos.”
A veterana jornalista Míriam Leitão é uma figura controversa por suas opiniões, dona de altos e baixos em sua carreira, em especial na Globo News. Acima de tudo, soma-se a isso sua credibilidade enquanto profissional da comunicação e sua aptidão a literatura, como nesse recente Tempos Extremos, seu primeiro romance, publicado pela famosa editora Intrínseca. Expondo seu vasto repertório intelectual sobre o país que habita, e o seu interesse insaciável por quartos escuros e empoeirados que impede uma casa de ser limpa, Leitão constrói sua própria Macondo, a mítica aldeia de Gabriel García Márquez, tendo na centenária fazenda Soledade de Sinhá o seu portal físico para uma outra “dimensão”; outras eras de um Brasil inacabado que vê suas feridas abertas e nunca as trata. Feito brasa que, ao mero sinal de brisa rarefeita, também revive o fogo de outrora. A história importa, sim, e quem comanda o mundo sabe muito bem disso.
Em um universo paralelo de múltiplas realidades que suga os mais curiosos, somos a ele tragados junto da doce, discreta, pensativa e corajosa Larissa, jovem mulher que passa um feriado com a família no interior mais denso de Minas Gerais, atendendo ao chamado da avó para ver toda a família reunida. No que começou como um vulto escuro a ser seguido, Larissa então recebe outros chamados de um pretérito que deseja engoli-la por entre suas veredas, como se aceitasse uma turista do presente a transitar pelos idos reprimidos que nunca desapareceram do DNA desta terra. Justamente por ser historiadora, Larissa começa a duvidar se as suas visões e interações com o passado e suas figuras típicas são mero delírio, algum tipo de distúrbio mental projetando períodos históricos diversos, ou uma realidade fantástica que só se revela a ela, e começa a tomar conta do cenário repleto de documentos, cheiros e enigmas históricos.
Todo escritor merece sua própria Macondo, sua Nárnia, sua Soledade de Sinhá para atravessar a outras realidades temporais, seja lá quais forem os motivos de acessá-las, rompendo linhas entre o hoje, e o ontem. Leitão impressiona em sua prosa por mixar outros conflitos (a época da escravidão, o regime militar) sob a lente política e crítica de uma mulher de alma desbravadora, e que em sua postura e dialética flerta absolutamente bem com os interesses da própria autora de Tempos Extremos. Toda a consciência de Larissa faz paralelo a de Leitão, vivendo uma aventura junto de sua família rumo aos rincões de um país abissal, e promovendo reviravoltas e reflexões para si mesma e aos seus entes queridos acerca do mundos dos mortos que tanto nos influencia – influência inteligentemente metaforizada aqui nas decisões que Larissa começa a tomar, da metade do livro em diante, para se infiltrar, cada vez mais, na sedução que fantasmas de outras raças, outras épocas a propõe. Alma detetivesca incendiada pela iminência das próximas pistas de um quebra-cabeça irresistível.
“O país tem direito a verdade e a memória”, diria qualquer jornalista e historiadora que se preze. Naquela fazenda, Larissa vai literalmente do século XXI aos porões da Casa Grande, quando a sociedade escravocrata presenciou pela primeira vez uma negra tocando piano (a mais bela e simbólica passagem do livro), enquanto lembranças de um tempo autoritário (e recente) do país vêm à tona, impactando toda a família na fazenda e as relações com o tempo atual. Leitão surfa entre décadas e séculos com grande desenvoltura, e o passado assim se alastra: Tudo é tomado de assalto por verdades antepassadas que precisam se mostrar, urgentemente, seja no claro, seja no escuro. A história importa, e a autora ilustra isso da melhor forma possível em tempos que pedem empreitadas do tipo. Isso porque o Brasil talvez não evolua em seus principais aspectos justamente por não resolver de fato as suas pendências, por não reviver os seus porões, preferindo trancá-los e passar tinta nas imperfeições mais basilares. Não é o mesmo com a gente? Seria então o mesmo com a nossa pátria.
Compre: Tempos Extremos – Miriam Leitão.