Poucos são os diretores de animação japonesa dos quais o publico geral digna-se a memorizar o nome após uma apreciação, para, quem sabe, no futuro, vislumbrar outras obras.
Tal tratamento é geralmente reservado aos grandes mestres do cinema, como Hayao Miyazaki, Katsuhiro Otomo e Satoshi Kon. Quando falamos de produções televisivas, este seleto grupo de nomes conhecidos se reduz ainda mais, salvo exceções como Shinishiro Watanabe e Mamoru Oshii.
Por mais que realizadores como Makoto Shinkai, com seu artístico e pessoal acervo, e Akiyuki Shinbou, com seu frenético, porém sempre competente trabalho, estejam constantemente produzindo, não existem muitos que, como estes, são acompanhados de perto pelo publico.
Frente a essa multidão de ilustres desconhecidos, há um nome que vem ganhando notoriedade nos últimos anos: Kenji Nakamura, um diretor de animes televisivos que, apesar da pouca bagagem, mostra em seus trabalhos visão e técnica fora do comum.
o inicio do ano de 2006, Kenji Nakamura, mesmo já figurando a lista de suporte de diversas séries, era ainda um nome inexpressivo na indústria. Isso veio a mudar naquele mesmo ano, quando a antologia animada Ayakashi – Samurai Horror Tales foi ao ar pelo bloco noitaminA, da TV Fuji, lar de todas as animações futuras do diretor. Propondo dar nova roupagem a contos de horror antigos e criaturas mitológicas nipônicas, o anime de 11 episódios apresentou três histórias, cada qual com um diretor diferente.
Os dois primeiros, por mais que cumprissem seu papel na renovação dos clássicos adaptados, não obtiveram êxito em gravar suas identidades, deixando juntamente com os episódios uma impressão de vazio. Entretanto, o ultimo arco da série, uma história original que apenas baseava-se no conceito de Bakeneko (gato fantasma, monstro comum do folclore japonês), conseguiu tudo aquilo que seus antecessores falharam em fazer. Amarrando um enredo elaborado e impactante, personagens enigmáticos, uma atmosfera tensa e um visual deslumbrante, o diretor do ultimo arco mostrou talento e competência acima da média. Este diretor era Kenji Nakamura.
O trabalho feito na conclusão de Ayakashi tanto agradou que, passado menos de um ano, este ganhou um spin-off. Eis que então, em Julho de 2007, ia ao ar Mononoke, marcando a primeira vez de Nakamura tendo em mãos o leme de toda uma produção.
Mostrando ocorridos desconexos da jornada de seu carismático protagonista, uma entidade sem nome, cunhada apenas como Kusuriuri (antiga profissão, que consiste em um vendedor errante de medicamentos), cuja missão é buscar e exorcizar Mononokes – seres criados do rancor, temores e anseios dos corações humanos – o primeiro trabalho solo de Nakamura consegue ser intrigante, empolgante, por vezes assustador, e ainda assim poético.
Primordialmente oculto pela premissa simples, o jogo de morte e ressentimento que se intensifica caso após caso nos mostra, através dos seres mitológicos da cultura daquele país, as enfermidades da alma humana. Mononoke é uma obra introspectiva, que agrada justamente por tragar o espectador para uma trama que exige reflexão sem se tornar maçante ou cansativo.
A arte belíssima, caracterizada por texturas espessas e cores vivas, acentuando o character design incomum, de um balanço ímpar entre o realístico e o caricato e que coroa os muitos méritos da série.
Trabalhando por mais de um ano com o Kusuriuri e seu universo, o diretor adquiriu experiência e traçou as características que permeariam o restante de sua obra: cores vibrantes, o uso de ângulos inusitados, recortes e uso do cenário como recursos narrativos. Elementos esses que podem ser observados, com acréscimos e evolução notável, em seu trabalho seguinte: Kuuchuu Buranko, também conhecido por Trapeze.
Em algo que pode apenas ser descrito como um delírio animado, Nakamura mesclou animação convencional com lapsos do mundo e pessoas reais, seja em interação plena, sobreposição ou composição dos cenários, resultando em uma esplêndida experiência visual.
Baseado, embora não muito fielmente, na série literária de curtas histórias de Hideo Okuda, o anime nos apresenta Irabu Ichiro, um psiquiatra que acompanha e trata de forma atípica uma soma de 11 pacientes, um a cada episódio. Passados em uma semana, do dia 17 de Dezembro até o natal de certo ano, os diversos casos se intercalam em uma cadeia de distúrbios mundanos.
Se em Mononoke o diretor pôde flertar com a psique humana, aqui, como a premissa sugere, foi-lhe permitido explorá-la a fundo. Alternando comédia, crítica e sugestão, Kuuchuu Buranko é uma obra de originalidade irrefutável e execução imponente, que merece ser, como por muitos já é, tratada como a máxima de Nakamura.
Já tendo no curriculum uma série episódica e outra composta por arcos curtos, em 2011 Nakamura aventurou-se em uma obra com trama contínua, o que pode ter sido uma infeliz escolha. [C]: The Money of Soul and Possibility Control, ou apenas [C], consiste em um vago estudo social que mescla ficção cientifica não muito embasada, ação pouco empolgante e suspense.
Aqui vemos sua pior realização; uma obra que, afora o visual ainda magnifico e a trilha sonora grandiosa, não se equipara aos trabalhos anteriores. [C] não possui uma proposta ruim, pelo contrário, propõe uma interessante análise do mercado financeiro e da relação entre homem e capital, somando ação e drama a esta que poderia ser uma premissa monótona. Porém, por mais adequado que o propósito seja, a execução é falha. Nakamura erra sucessivamente em fechar um numero considerável de tramas em meros 11 episódios, direcionar os personagens de forma crível e dialogar com o espectador acerca de suas reais intenções.
Trabalhar com tramas intimistas por um longo tempo certamente o privou do necessário para dirigir algo que, em certo ponto, alcançou proporções cataclísmicas como [C]. Por mais que tenha sim suas virtudes, este titulo é inexpressivo frente às joias de seu passado.
Em uma carreira até então curta, composta por dois grandes acertos e um pequeno deslize, Kenji Nakamura revela ser uma mente criativa respeitável. Ostentando uma percepção aguda, mãos cuidadosas e competentes e uma visão de mundo diferenciada, o diretor conquistou seu espaço em meio aos talentos da atual indústria. Que não tardem a chegar seus novos trabalhos, nos fascinando com suas vibrantes e perturbadoras cores!
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Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.