Categoria: Cinema

  • Crítica | Cantinflas: A Magia da Comédia

    Crítica | Cantinflas: A Magia da Comédia

    Começando com uma curiosa narração, que demonstra o panorama do cinema mundial nos idos de 1955, o filme de Sebastian del Amo diversifica a linguagem entre o inglês americano e o espanhol, numa co-produção repleta de referências a estrelas da sétima arte. O plot explorado é a difícil mega produção que adaptaria o romance de Júlio Verne, A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. Após recusas de possíveis protagonistas para a película, surge o nome do humorista mexicano Mario Moreno – executado por Óscar Jaenada – que é um aspirante, ainda tímido, executor de esquetes de comédia.

    A trajetória de Mario rumo à tentativa de se tornar um sucesso é dividida em tela pela volúpia de Michael Todd (Michael Imperioli) em tentar reunir o maior número possível de estrelas para a fita que quer produzir. Pressionado pelo estúdio, Mike passa por dificuldades cada vez maiores em angariar verba para a produção de seu épico. Logo, os destinos dos dois protagonistas cruzam-se.

    Retornando ao passado, Mario observa como o humor pode retratar bem a sociedade, fazendo, inclusive, políticos famosos rirem de peripécias semelhantes aos descasos à máquina pública. O humor poderia ser uma ferina arma nas mãos de um excelente guerreiro, um método que foge do lugar comum no dever de denunciar as mazelas sociais. O roteiro de Del Amo é simples, didático, mas não trata seu espectador como bobo, pelo contrário, revela de modo leve e singelo a evolução de Moreno como palhaço. Após algumas experiências de vestuário, Mario dá luz a Cantinflas, sua persona que ficaria famosa por todo o México e que o levaria a ser uma figura importante do cinema latino.

    A fama de Cantinflas cresce tanto que, na época retratada de 55, o humorista se dá ao luxo de recusar um papel secundário no filme que Mike produz. A mudança de estilo de vida do artista é mostrada de modo gradativo. O Vagabundo Cantinflas ganha os palcos e as salas de cinema com as estreias de Aí Está o Detalhe! e produções posteriores, focando a capacidade de improviso do humorista e sua pouca afeição a seguir os roteiros de modo linear. O intérprete se transforma em um competente realizador e produtor, aclamado por crítica e público, lançando mão de bens materiais de alto custo, mudando completamente de patamar econômico.

    Cantinflas é uma cinebiografia focada nos atos que envolvem a criação de uma película fadada ao fracasso desde sua pré-produção, e que só conseguiu ver a luz do dia ao decidir entregar o protagonista ao personagem título, um indivíduo latino, naturalmente ignorado pela sociedade conservadora dos Estados Unidos, ainda mais na metade do século XX. A relação de Mario com Mike faz com que a relato de vida seja dividido entre ambos, na construção da improvável amizade que se arrastou pelos anos de vida da dupla, até o acidente que cerceou a vida de Michael.

    O filme de Del Amo consegue ser reverencial e informativo, num equilíbrio poucas vezes vistas no gênero, trazendo à luz um personagem importante do cinema mundial, mas pouquíssimo conhecido no Brasil. O acerto talvez tenha sido não o de retratar Mario Cantinflas como uma figura mítica, mas sim de forma mais humana, repleta de falhas, acertos e fracassos, ainda que sua obra seja prolífica e genial.

  • Crítica | Para Sempre Alice

    Crítica | Para Sempre Alice

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    Ao começar a fita de Richard Glatzer e Wash Westmoreland com uma comemoração de aniversário da professora Alice Howland, o intuito é ambientar o público na condição inspiradora da mulher sobre os seus, iniciando por sua família, devota à matriarca, passando pelo ofício da mulher, exibindo-a habilmente em uma palestra diante de uma plateia renomada. A linguística, parte fundamental de seu trabalho, é o tema de seu discurso, atrapalhado levemente por um simples acontecimento, o esquecimento de uma palavra básica, que  – traduzida para o português – seria lexical.

    Alice é vivida por uma madura Juliane Moore, tendo em comum com sua personagem o fato de não aparentar ter chegado aos cinquenta anos. Tal fator é importante para a formação da psiquê da professora e mãe, que tem de lidar com as perdas e ganhos familiares, e até com o esquecimento de fatos que lhe causam azedume. Em uma visita à sua filha Lydia (Kristen Stewart), Alice é convidada a pensar mais em si, impondo um desapego aos problemas de sua herdeira, quase como uma premonição de sua condição ainda nem descoberta, a doença tão temida e incurável. Uma relação bastante conturbada, presente no choque de gerações entre Lydia e Alice.

    Os testes de memória impingidos à personagem são preconizados por um close-up em Moore, revelando olhos marejados, prontos a desabar em lágrimas, como mais um evento de sensibilidade intuitiva e alarmista, ainda que neste momento nada se acuse. As reuniões familiares em datas especiais prosseguem, mas sempre com a falta de um dos membros, emulando as perdas memoriais que se somam na lembrança de Alice.

    As consultas ao médico vão tomando a forma do medo não dito, e aos poucos ela toma coragem o suficiente para se abrir ao marido, John (Alec Baldwin), que tenta demovê-la da ideia de que as memórias estão realmente se esvaindo, jogando estes fatos no irrelevante ponto da normalidade, associando o problema ao avanço da idade. A resposta imediata da protagonista é chorar e berrar, externalizando todo o grupo de sensações atrozes que se retêm apenas na parte calada do cérebro.

    O sentimento de impotência é agravado quando Alice descobre que a condição raríssima é transmitida de forma hereditária, “herdando-a” possivelmente de seu pai, o que demonstra a grande possibilidade de transmissão dos genes aos seus descendentes, fato que se consuma. A devastação emocional a faz balançar, e manter-se íntegra e sã é uma tarefa cada vez mais difícil.

    A delicadeza com que a condição é tratada em tela chega a assustar, desde o modo como a adoentada tem de lidar com sua situação imutável até as consequências da revelação, assoladora dentro do seio familiar. A necessidade de mudanças se mostra um exercício árduo para todas as partes, piorado pela sensação da heroína de impotência e de obsolescência não programada. Todo o entorno e as alterações rotineiras são exibidos paulatinamente e na mesma velocidade com que o Mal se alastra pelas sinapses da personagem.

    A gradativa perda de articulação faz Alice perder mais que “simples” palavras, pois ela também se distancia de sua identidade, por vezes desaprendendo os valores éticos e morais que sempre regeram sua vida. A lente se embaça. Em mais uma visita à clínica, revelam-se mais perdas, tantas que a consciência da personagem mal é estabelecida.

    Alice começa a visitar o HD de seu computador, encontrando mensagens gravadas em vídeo por ela, em momentos pretéritos ao avanço estupendo da doença. Até a possibilidade de suicídio é aventada e contada passo a passo, para que o peso de sua culpa e a dos seus entes queridos pudessem ser aplacados de algum modo. Um gesto pensado de um modo que causaria ainda mais tristeza naqueles que a cercam e da qual cuidam.

    A história baseada no livro de Lisa Genova apresenta uma faceta melancólica e singela de uma síndrome tão pouco conhecida pelo homem, fato que por si só causa muito temor em quem a contrai e em quem fica ao redor. A solidariedade, divisão do fardo do sofrimento belamente mostrada na direção de Glatzer e Westmoreland, só é possível pela completa entrega de Moore, que não cansa de se reinventar, tanto como figura sedutora e cativante, quanto no ofício artístico. Para Sempre Alice produz sensações de indignação, comiseração e necessidade de amparo, alertando o público para uma questão aviltante, com muito mais alcance que qualquer panfleto institucional.

  • Crítica | Busca Implacável 3

    Crítica | Busca Implacável 3

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    A busca pelo paradeiro da filha sequestrada em terras estrangeiras foi a trama que transformou o consagrado Liam Neeson em astro de ação. Naturalmente, o sucesso de Busca Implacável gerou uma sequência, inferior e carregada de exageros comuns em sequências que sempre tentam superar a história original. Após o lançamento desta segunda produção, Neeson deu prosseguimento ao seu potencial como ator de ação. Mais um filme sobre o preocupado pai familiar Bryan Mills seria inevitável. E mais: trilogias sempre são aceitas no mercado como uma espécie de obra maior dividida em partes e, dessa vez, Busca Implacável 3 poderia redimir a série da história anterior e apresentar um desfecho, ou mais uma situação limite para as personagens.

    Três anos atrás, o astro afirmava que não havia possibilidade de haver uma nova produção. Por fim, aceitou retornar ao papel com a condição de que nenhum sequestro fizesse parte da trama. Como na primeira história, Kim (Maggie Grace) está prestes a fazer aniversário, e o pai procura um presente para a garota. Desde as experiências traumáticas anteriores, Kim mantém uma relação unida com o pai, ainda que ele sempre veja-a como a pequena garotinha que um dia foi. Porém, adulta, morando na companhia de um namorado, a filha não precisa de proteção. A repetição do aniversário serve como um comparativo entre a passagem de tempo de uma história a outra.

    A mudança de paradigma é um dos pontos principais desta nova trama. Devidamente acusado pela morte de sua ex-esposa, Lenore (Famke Janssen), cabe ao ex-agente do governo fugir da polícia enquanto tenta provar sua inocência. Os papéis invertem-se e, em vez de caçar as pistas, a personagem deve desorientar seus perseguidores.

    A fluidez narrativa da primeira história ganha maior espaçamento temporal. Trata-se do filme mais longo da trilogia, e a trama desenvolve-se sem a urgência das anteriores. Bryan traça seu plano lentamente, primeiro informando a filha e os parceiros de suas intenções para, finalmente, entrar em ação direta com os prováveis responsáveis pelo assassinato de sua esposa. Há mais trama e menos ação, uma mudança que pode incomodar parte do público, mas  que é eficiente para equilibrar o enredo e superar o anterior.

    Neeson continua à vontade em sua nova composição de personagem, aproveitando seu porte físico. As cenas de ação foram realizadas sem nenhum dublê e mantêm as mesmas características das anteriores, com cenas rápidas prezando a melhor forma de neutralizar os inimigos. Há momentos de ação em uma quantidade suficiente para animar o público, e uma épica cena – que popularmente poderia ser definida como uma clássica cena massavéio – a qual somente filmes de ação poderiam nos proporcionar. É absurda, impactante e divertida.

    Mesmo com uma breve carreira na direção, com todos os filmes focados na ação, Oliver Megaton, que também realizou Busca Implacável 2, trabalha com competência estas cenas e entrega uma história que possui bons momentos de tensão e ação. Por tratar-se de uma história sempre atrelada a um ajuste de contas, torna-se evidente que pontas soltas e ameaças de vingança permanecem como futuras possibilidades. Feliz com o trabalho desta segunda continuação, Neeson já declarou que não descarta participar de mais uma sequência, demonstrando o quanto o ator deseja permanecer trilhando esta nova fase de brucutu badass.

  • Crítica | A Mulher de Preto 2: Anjo da Morte

    Crítica | A Mulher de Preto 2: Anjo da Morte

    A Mulher de Preto 2 O Anjo da Morte

    Dez anos após os acontecimentos de A Mulher de Preto, lançado em 2012, com Daniel Radcliffe, a mística do terror sobrenatural incorporado em uma misteriosa mulher em trajes pretos retorna aos cinemas. Mulher de Preto 2 – Anjo da Morte estreou simultaneamente nos cinemas e também como romance literário, escrito por Martyn Waites com base em um conceito da autora do original, Susan Hill, e no roteiro desenvolvido por Jon Crocker.

    Durante a guerra, Londres vive sob bombardeios diários que destroem famílias, deixando órfãos como sobreviventes. Decididas em afastar os infantes desses horrores, uma governante e uma professora reúnem um grupo de crianças e levam-nas para um local pacífico. O momento precário sem muitas opções faz com que o grupo se hospede na Mansão do Pântano, conhecida desde o filme anterior como a morada da mulher de preto. Dentre o grupo de órfãos, o pequeno Edward ainda vive o luto da perda dos pais e, traumatizado, não pronuncia nenhuma palavra. O garoto evidentemente será a conexão estabelecida com o sobrenatural. É uma representação tradicional do infante puro, porém traumatizado, que por sua formação ainda primária chama a atenção do espírito.

    As câmeras subjetivas são o primeiro indício de uma força oculta presente na casa. Porém, a figura título é tão enigmática que mal aparece em cena. Raramente vemos inferências de sua presença em cenas rápidas ou nos detalhes em close, como mãos e a mortalha utilizada como figurino. Não fosse a obra uma sequência, a trama poderia envolver outra entidade tamanha ausência da personagem, que supostamente deveria conduzir o medo tanto para o enredo do filme como também aos espectadores.

    Há uma descrença da própria situação por parte dos personagens. Após as primeiras manifestações de sons e objetos se movimentando, e do estranhamento natural diante de tais situações, a personagem central, a professora Eve Parkins, modifica sua postura e não mais parece angustiada por um elemento desconhecido. Como se soubesse exatamente do que se trata a presença espiritual, e esta não mais lhe amedrontasse. Em nenhum momento, porém, o grupo parece conhecer a história anterior do advogado Arthur Kipps, que também passou por apuros na primeira produção graças a esta manifestação espiritual. Há uma breve investigação sobre a origem da mulher e a perda de um filho, mas este argumento não é suficiente para que se compreenda a motivação, se é que há uma, da entidade. E muito menos porque ela não é mais assustadora para a referida personagem da professora.

    O pequeno Edward, responsável por manifestar o ente, é um garoto nada empático. Mesmo uma trama envolvendo crianças, elevando o apelo assustador pelo perigo contra inocentes, este elemento não favorece a história devido à falta de carisma do garoto. É nele que reside o desejo de morte da mulher espírito. Porém, falta ao garoto cativar o público para que torçamos por sua salvação.

    O sucesso do primeiro filme, com 110 milhões em bilheteria arrecadados ao redor do mundo, sendo o terror britânico com mais público em em 20 anos, proporcionou a produção desta sequência, que se utiliza da mesma atmosfera original, porém com uma personagem assustadora que mal entra em cena, e adultos em dúvida se temem ou não as manifestações desconhecidas. Assim, esvai-se a sensação de que esta produção se aproveita do sucesso da anterior, regida apenas pela exigida demanda de continuações, sem nenhuma intenção de ser uma obra de terror ao menos razoável. Um terror que não provoca medo. Isso, sim, um fato assustador.

  • Oscar 2015 | Indicados e Ganhadores da Premiação

    Oscar 2015 | Indicados e Ganhadores da Premiação

    Melhor Filme

    Melhor Diretor

    Alejandro González Inárritu, Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (vencedor)
    Richard Linklater, Boyhood: Da Infância à Juventude
    Bennett Miller, Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo
    Wes Anderson, O Grande Hotel Budapeste
    Morten Tyldum, O Jogo da Imitação

    Melhor Atriz Coadjuvante

    Patricia Arquette, Boyhood: Da Infância à Juventude (vencedor)
    Laura Dern, Livre
    Keira Knightley, O Jogo da Imitação
    Meryl Streep, Caminhos da Floresta
    Emma Stone, Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

    Melhor Ator Coadjuvante

    Melhor Roteiro Adaptado

    O Jogo da Imitação, Graham Moore (vencedor)
    Sniper Americano, Jason Hall
    Vício Inerente, Paul Thomas Anderson
    A Teoria de Tudo, Anthony McCarten
    Whiplash: Em Busca da Perfeição, Damien Chazelle

    Melhor Roteiro Original

    Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), Alejandro González Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris e Armando Bo (vencedor)
    Boyhood: Da Infância à Juventude, Richard Linklater
    Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo, Dan Futterman e E. Max Frye
    O Grande Hotel Budapeste, Wes Anderson e Hugo Guinness
    O Abutre, Dan Gilroy

    Melhor Filme Estrangeiro

    Ida (Polônia – vencedor)
    Leviatã (Rússia)
    Tangerines (Estônia)
    Timbuktu (Mauritânia)
    Relatos Selvagens (Argentina)

    Melhor Documentário

    Citizenfour (vencedor)
    Vietnã: Batendo em Retirada
    Virunga
    A Fotografia Oculta de Vivian Maier
    O Sal da Terra

    Melhor Edição

    Melhor Edição de Som

    Melhor Figurino

    O Grande Hotel Budapeste (vencedor)
    Vício Inerente
    Caminhos da Floresta
    Malévola
    Mr. Turner

    Melhor Canção Original

    Glory, Selma: Uma Luta Pela Igualdade
    Everything is Awesome, Uma Aventura LEGO
    Grateful, Nos Bastidores da Fama
    I’m Not Going to Miss You, Glen Campbell: I’ll Be Me
    Lost Stars, Mesmo Se Nada Der Certo

    Melhor Trilha Original

    O Grande Hotel Budapeste, Alexandre Desplat (vencedor)
    O Jogo da Imitação, Alexandre Desplat
    Interestelar, Hans Zimmer
    Mr. Turner, Gary Yershon
    A Teoria de Tudo, Johann Johannsson

    Melhor Design de Produção

    O Grande Hotel Budapeste (vencedor)
    O Jogo da Imitação
    Interestelar
    Caminhos da Floresta
    Mr. Turner

    Melhor Efeitos Visuais

    Interestelar (vencedor)
    Capitão América 2: O Soldado Invernal
    Guardiões da Galáxia
    Planeta dos Macacos: O Confronto
    X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido

    Melhor Curta de Animação

    O Banquete (vencedor)
    The Bigger Picture
    The Dam Keeper
    Me and My Moulton
    A Single Life

    Melhor Curta-Metragem

    The Phone Call (vencedor)
    Aya
    Boogaloo and Graham
    Butter Lamp
    Parvaneh

    Melhor Curta-Documentário

    Crisis Hotline: Veterans Press 1 (vencedor)
    Joanna
    Our Curse
    The Reaper (La Parka)
    White Earth

  • Crítica | As Névoas do Terror

    Crítica | As Névoas do Terror

    Study In Terror - Poster

    A produção de 1965, dirigida por James Hill, começa em tom folhetinesco, com o assassinato de uma messalina, utilizando um enfoque bastante sensacionalista, unindo dois dos maiores ícones britânicos em um só universo ambiente. A vida burlesca da grande metrópole é mostrada como em um grande pastiche, em uma visão debochada da faceta marginal em plena Era Vitoriana.

    A cena do segundo assassinato varia em dois ângulos – a moça é jogada em uma bacia cheia de água, e de cima o estripador toscamente esfaqueia a vítima, num plano muito mal enquadrado; mas de outro ângulo, vê-se nos olhos da martirizada mulher a arma branca invadindo a água, e, para o seu terror, o sangue subindo, numa belíssima tentativa de imergir o público, pondo-o no lugar de sofrimento da assassinada.

    John Neville faz um Sherlock esguio, como nos desenhos de Sidney Paget, exceto pelo penteado sem entradas de calvície. Vivaz, ativo, praticamente irreconhecível quando disfarçado, diferente de sua contraparte nas películas do final dos anos 30, se diferenciando de Basil Rathbone em qualidade, claro, livre das amarras temporais do intérprete anterior.

    A caça aos libertinos passa a ser prioridade para alguns da comunidade, ao contrário da captura do vil assassino – a crítica à hipocrisia desta sociedade não é velada, ao contrário da larga utilização dos serviços das mulheres pouco respeitáveis por parte de senhores da alta classe.

    A câmera usada como os olhos do monstro/assassino, 10 anos antes de Tubarão de Steven Spileberg, registra o modus operandi de uma das profissionais do sexo, além de mostrar o fim inevitável que sua vida de pecados lhe causou. Os zoom outs que contemplam a arma do crime e a trilha sonora histriônica causam no espectador um misto de temor e impaciência em descobrir quem está por trás dos temíveis e atrozes crimes de Jack, O Estripador.

    O desfecho é mais do que satisfatório, misterioso até o fim. A hipótese da película de James Hill é a de que, se Sherlock habitasse o mesmo mundo de Jack Estripador, sua identidade não seria incógnita por tanto tempo. O espectador não é subestimado, e o roteiro de Derick Ford é muitíssimo bem construído, fazendo do paupérrimo orçamento algo irrelevante diante dessa história tão bem urdida.

  • Crítica | Alien 3

    Crítica | Alien 3

    Alien 3 versão estendida

    Após o enorme sucesso de público e crítica depois do lançamento de Aliens: O Resgate, uma enorme expectativa sobre uma nova parte da saga dos xenomorfos foi criada. Ao longo de alguns anos, várias versões de roteiro foram escritas e reescritas. A missão de produzir o novo capítulo de uma série de filmes que foi um marco para a ficção científica provou-se pesadíssima. Porém, no ano de 1992, Alien 3 chegou aos cinemas.

    A trama do filme passa-se algum tempo depois dos eventos narrados na segunda parte da quadrilogia. A Sulaco – nave onde se encontravam em animação suspensa a Tenente Ellen Ripley, a criança Newt, o androide Bishop e o Cabo Hicks – cai em um planeta-prisão chamado Fiorina 161. Após o resgate da nave, fica comprovado que somente Ripley sobreviveu à queda. Pouco tempo depois disso, um boi (na versão original do cinema, um cachorro) é infectado por um facehugger escondido dentro do módulo que caiu, dando origem a um xenomorfo que passa a eliminar os prisioneiros um a um.

    Alien 3 retorna ao clima claustrofóbico e urgente do primeiro filme, pois não existem armas na prisão. Os corredores do cárcere em muito se assemelham aos da nave Nostromo, e o diretor David Fincher acaba emulando o estilo criado por Ridley Scott em Alien: O 8º Passageiro. Isso provavelmente aconteceu por pressão do estúdio. A produção do filme foi conturbada desde o início devido às várias versões de roteiro ao longo dos anos e a intensa interferência dos engravatados no trabalho do diretor, fazendo com que o filme não tivesse o mesmo nível de seus predecessores. Fincher renegou a obra algum tempo depois devido ao inferno que viveu na época.

    A versão de cinema para Alien 3 possui grande furos de roteiro, já que um grande número de cenas foi cortado. Isso fez com que o filme se tornasse muito apressado – ainda que sua metragem seja de 115 minutos – e com algumas resoluções bem absurdas para certas situações apresentadas na trama. Já a versão estendida acrescenta por volta de 30 minutos de cenas à obra, tornando a película mais coerente e se aproximando mais da visão de Fincher. Cabe dizer que o diretor não teve participação nessa nova montagem. É interessante ver que mesmo remasterizadas em alta definição, algumas cenas sofrem de problemas técnicos, talvez em razão da degradação dos negativos ao longo dos anos.

    O roteiro final, assinado por David Giler, Walter Hill e Larry Ferguson, a partir de uma história de Vincent Ward, possui alguns pontos bem interessantes que são melhores apresentados nesta versão do filme. O principal ponto é a questão religiosa dos presos de Fiorina 161. Devido a isso, eles traçam uma analogia de que o alien seria a criatura do juízo final. Alguns, em um momento inicial, não se importam se são mortos por ela. Interessante ainda é o fato de que a batalha de Ripley com a raça alienígena ganha um aspecto pessoal, afinal, graças ao alien, a tenente perdeu toda a convivência com a sua filha (é mencionada a morte dela no segundo filme), perdeu aquele que poderia ser um novo amor (o Cabo Hicks) e quem poderia colocá-la no papel de mãe novamente (a menina Newt). Há ainda um espaço para a retomada do plot do segundo filme, onde a corporação Weyland-Yutani desejava transportar os aliens para a Terra a fim de estudá-los e criar uma nova arma biológica. Tal situação ocorre bem próxima ao final da película e gera um interessante embate entre Ripley e um funcionário da companhia interpretado por Lance Henriksen.

    Quanto às atuações, Sigourney Weaver mantém o nível dos filmes anteriores, porém imprime bastante amargura à protagonista. Talvez sua melhor cena seja a da autópsia no corpo de Newt. Charles S. Dutton dá um verdadeiro show como o líder religioso dos internos na prisão, e as cenas que ele antagoniza contra a tenente Ripley são sensacionais. Charles Dance, como o médico que desperta o interesse da personagem principal, também está muito bem em cena.

    Ainda que não seja tão espetacular como os primeiros, Alien 3 é um grande filme, e esta Versão Estendida o torna bem mais interessante, produzindo um desfecho mais apropriado para o arco de histórias da Tenente Ellen Ripley contra o xenomorfo assassino.

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  • Crítica | Mesmo Se Nada Der Certo

    Crítica | Mesmo Se Nada Der Certo

    Poster Mesmo se Nada Der Certo

    O produtor musical Dan Mulling (Mark Ruffalo) era tão ocupado que precisa utilizar qualquer tempo livre que tem para ouvir os aspirantes a cantor que aparecem para ele. Mesmo quando preso no trânsito, ele passa um bom tempo escutando os pretensiosos artistas. Retirado de uma sucessão de clichê de comédia romântica, o estereótipo tem seu ápice no homem confuso, sem identidade, que ainda não achou o amor verdadeiro, e até sua vida familiar é bagunçada. O protagonista chega ao fundo do poço ao se deparar com a demissão da produtora musical que fundou.

    A cidade de Nova York constitui o cenário perfeito para o alvorecer de uma estrela, e é em meio a um bar pé-sujo no subsolo que Dan se depara com algo subvalorizado pelo público presente, mas que lhe acende a criatividade e um bocado do prazer. Para (não) surpresa do público, a figura que encanta o desolado homem é a bela Gretta (Keira Knightley), uma cantora resignada, que somente faz composições, apesar de ter uma bela voz. O motivo do asco pela fama é justificado pela atribulada intimidade dela como cônjuge e compositora anônima de Dave Kohl (Adam Levine). O namorado faz um sucesso enorme, mas esconde a real autoria de suas canções, muito pela timidez de Gretta, mas também por uma canalhice, que se provaria maior pelo motivo que o faz romper a relação.

    Juntos, os pares desordenados começam a planejar uma nova empreitada musical, com músicos que aparecem repentinamente para colaborar de graça com a produção da fita demo, todos inspiradíssimos, como se algo cósmico estivesse prestes a ocorrer. A harmonia com que o clipe é conduzido é de fazer inveja a qualquer musicista profissional. Até os percalços das locações externas onde a fita é gravada colaboram para a perfeita feitoria da canção, convenientemente.

    O “casal” torna-se tão perfeito em suas ações que Gretta consegue conquistar a afeição da filha dele, Violet (Hailee Steinfeld), sendo uma conselheira amorosa, dando um banho de loja na garota e descobrindo um talento musical que fugia aos olhos do pai. O estado de perfeição só é quebrado após ambos comentarem como suas relações acabaram, entrando em um novo nível de intimidade, onde máscaras de hipocrisia não poderiam mais prevalecer. A conversa a partir daí evolui para uma amizade de apoio mútuo, com potencial para se tornar algo mais.

    O par se conheceu no pior momento de suas vidas, onde a aflição imperava. Seria uma comédia repleta de bordões e banalidade, não fosse a mola central da engrenagem. O modo como a musicidade é percorrido pelo roteiro faz todas as repetições terem um sentido maior do que o normal, com significado e profundidade acima das baboseiras pré-fabricadas e de cunho publicitário. A condução delicada de John Carney faz tudo isso soar naturalmente.

    Mesmo as cenas irreais ganham uma aura de fantasia graças ao místico da música. As paragens, que normalmente seriam barulhentas ao extremo, prostram a melodia presente na alma de Gretta, funcionando de modo despretensioso, como uma comédia chapa branca, mas sincera em cada acorde. Nenhuma interferência externa, fora os personagens centrais, os músicos e seu entorno, consegue subsistir ante a magia musical da banda quando está em forma.

    Mesmo Se Nada Der Certo é um filme sobre essência, que apesar de apegar a fórmulas tem em sua mensagem a fuga da formatação, tanto das músicas quanto do cotidiano. O ineditismo está intrinsecamente ligado à obsessão de Gretta e Dan, e é por isso que as vidas de ambos eram tão miseráveis antes. Soterrados pelo tédio, eram incapazes de usufruir dos momentos simples e felizes de suas vidas. Mesmo diante de uma saída fácil, em que poderia reunir os dois com um romântico par, Carney prefere mostrar a evolução de pensamento, tanto de Gretta quanto de Dan, com frieza de espírito suficiente para decidirem suas vidas de modo calmo e correto, costurando um desfecho plausível com toda a duração do drama e de modo extremamente positivo.

  • Crítica | Vingança ao Anoitecer

    Crítica | Vingança ao Anoitecer

    Ainda longe dos holofotes hollywoodianos, Paul Schrader prossegue em uma busca árdua para produzir seus próprios filmes, que exibem um escopo violentíssimo, não enquadrado no cinema familiar tipicamente americano. Ainda na linha de seu anterior The Canyons, o diretor se vale de um rosto famoso para atrair investidores e aplacar um pouco da perda de público causada pela excessiva violência de suas fitas. O escolhido da vez é Nicolas Cage, uma persona muito menos problemática do que a protagonista anterior, Lindsay Lohan.

    Evan Lake é um veterano agente da CIA, diagnosticado com demência, e guardando mostras de desprezo a si próprio, a começar pelas madeixas grisalhas que predominam sobre a fronte de seu calvo intérprete. Cage tenta fugir das últimas atuações tenebrosas, como as em Apocalipse, Fúria e tantas outras bombas que chegaram no mercado de home video. Sua interpretação é a de um sujeito apaixonado, patriota e ético, um homem que acredita que a morte em serviço seria uma honra, e não uma fatalidade. Tal situação sentimental é causada por um trauma, originado em uma tortura mal filmada, fruto do parco orçamento de cinco milhões de dólares.

    Apesar de sua condição clínica, diagnosticada com “demência fronto-temporal”, que se propaga a passos largos, mostrada pelo médico como ainda mais agressiva que o Mal de Alzheimer, Lake ainda se vê pronto para o serviço, cada vez mais preocupado com uma possível ameaça terrorista, que é tratada de modo pouco relevante por seus superiores, motivados, é claro, pelos ecos da doença.

    Mesmo com as negações, há quem acredite no relato do agente, com a fita se encarregando de mostrar que realmente há alguma razão em seus relatos, exibindo um adoentado Mohammad Banir (Alexander Karim), o qual finalmente apareceu nos radares da CIA após 22 anos de seu desaparecimento. A necessidade de cumprir sua missão faz Evan correr em direção à luz, resgatando o seu dever e ofício acima de seu estado mental.

    A ação frenética lembra muito os filmes de superespiões, especialmente na interação entre o protagonista e o jovem agente, que lhe arranja condições de perseguir seus objetivos, Milton Schultz (Anton Yelchin), ajudando-o a fazer às vezes de “mestre do disfarce”. Em certos pontos, é quase possível esquecer-se da enfermidade do herói, dado o modo como ele se movimenta em direção ao término de seu tratado.

    As marcas no andar de Evan representam mais do que a dor que sentia em seu corpo, se propagando como o avatar do sofrimento, do já citado problema carnal e, claro, da libertação de espírito, que em último caso se resume à possibilidade de prosseguir com a paixão em ser agente de campo, apesar de todo o pesar que envolve este retorno, e da crescente queda de pressão que é fruto de sua doença.

    O embate que põe os dois moribundos frente a frente inverte os papéis do começo da fita, a despeito da regressão emocional pela qual passa o herói de ação. No discurso, há uma rasa discussão sobre os rumos políticos ideais para os países do Oriente Médio, ditos como inimigos do EUA, elevando a  condição do marxismo como uma possibilidade viável para a sustentação do equilíbrio social das nações islâmicas, o que obviamente interfere no pensamento imperialista do homem que somente segue ordens, representado no arquétipo do personagem de Cage.

    A defesa dos valores, presentes no American Dream e no American Way of Life, é realizada através do esforço máximo de Evan Lake, do começo ao melancólico e depressivo final, que aponta para a impossibilidade de este comportamento ainda existir. Para o espectador mais desatento, Vingança ao Anoitecer pode parecer propagandista, mas se analisados o conteúdo das falas dos antagonistas e as imagens que ocorrem nos pós-créditos, há como ver a escolha feita por Schrader, diretor que escolheu ser ufanista, de passar uma mensagem irônica, debochando do patriotismo exagerado e da ausência de pensamento crítico por parte dos que fazem o trabalho sujo do governo.

  • Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Selma - Luta pela Liberdade - poster brasileiro

    Vulgarizamos o que não entendemos, essa é uma das verdades sobre nós. Assim é com a matemática, quando esta deixa de ser divisão e vira fração na terceira série, ou com aquela redação dada em uma época que ainda não sabemos como segurar a caneta corretamente. Estende-se essa negação quando muitos veem um casal gay na calçada, e, se não atravessam a rua, preferem cometer barbaridades a deixar que cada um viva como queira viver.

    Desculpas ao riso são músicas em inglês em ouvidos treinados em uma única língua, ou alguém que veste amarelo aos olhos de quem só gosta de verde. Não menos que um negro, hoje o homem mais poderoso do mundo ocidental, disputando eleições na maior democracia consolidada do planeta. Fato risível, isso sim, na penosa, quase cármica época que o leve e forte filme da (ótima) cineasta Ava DuVernay se apropria em recriar com fidelidade, dor e esperança no Cinema, sem quaisquer apologias emocionais ou de caráter caricatural como nos recentes 12 Anos de Escravidão, Django Livre ou Gran Torino – neste último caso, racismo explícito contra japoneses.

    Todos esses filmes, bons ou regulares, atestam a ignorância humana a favor do desumano, enquanto Selma – Uma Luta Pela Igualdade opta pela ausência dessa ignorância em troca da presença do medo que poderosos brancos tinham de dividir um grama de seu poder com uma voz… diferente. Não é ignorância frente ao desconhecido, é medo de perder o poder, pois sabiam e sabem que, se uma voz consegue reunir duas pessoas, pode reunir 200 ou 3000 para protestar contra o que as impede de ser feliz na tentativa de sobreviver. E assim como Doze Homens e Uma Sentença, clássico de Sidney Lumet, um filme americano novamente discute, sem medo e com um fôlego renovado, as dívidas morais de uma sociedade, procurando um calor progressista em um conservadorismo congelado e congelante.

    Há muitos paralelos entre a obra de Lumet e esta de Ava, em especial o debate temático mostrado em tela, o suficiente para inspirar o espectador a se posicionar ante o certo e o errado, diante do que sente, sobretudo na perspicácia de explorar recantos intrínsecos ao status de cidadania, como a criminalidade, direitos civis e meritocracia, com um background repleto de questões atemporais e principalmente ricas em perspectiva e grau de tratamento artístico.  Ao “reescrever” a história de Martin Luther King, primeiro o homem e depois o herói, o escritor Paul Webb, de Lincoln (um ótimo roteiro, fragilmente adaptado por Steven Spielberg) volta aos malabarismos com o racismo e a segregação temporal, numa verdadeira lucidez temática sobre o assunto, e finalmente muito bem traduzido por Ava. A diretora, em seu terceiro longa-metragem – quase Like a Virgin, mas habilidosa a ponto de deixar ações e trilha sonora falarem mais alto que palavras – não se apoia nos recursos de liderança já citados, mas no gênio da artista de extrair bom senso, leveza e ponderação ética do material escrito por Webb. Trabalho de veterano(a) com garra de principiante.

    Faça a Coisa Certa, Fruitvale Station: A Última Parada, Compasso de Espera e, agora, este belo tratado sobre as fraturas do convívio humano… Ressacas sociais filmadas como rito de consciência e inteligência interemocional, fazendo, através de um arranjo tão forte, grandes filmes. Filmes além de pretensões para com gregos e troianos, senão com a harmonia entre a realidade e a ficção, com o contraponto da política teórica de gabinete e a política violenta das calçadas, valorizando a força real das situações graças à potência empregada com uma câmera de Cinema (um toque de parcialidade quanto ao drama vivido), e o poder deste em recriar uma época, suas cicatrizes e implicações com o hoje e, certamente, o amanhã.

    Selma carrega uma grande e imperturbável estabilidade emocional, transmitindo-nos segurança para a veracidade de fatos e relatos demonstrados em imagens difíceis de esquecer, como as impressionantes marchas de negros nas ruas e pontes de uma nação de mentalidade ainda escravista, excomungando cidadãos não reconhecidos como tal, com forças policiais caninas e leis de separação étnica, como se não bastasse. Cenário ainda retratado no Brasil, graças à violência policial e outras expressões de poder igualmente apodrecidas de dentro para fora. No filme, um retrato sem moldura, um alívio da realidade. Em cada olhar de uma atuação coletiva impecável, notam-se as expressões reproduzidas nos jornais, de famílias removidas de suas casas, e feições em protestos a favor de uma qualidade de vida melhor – e proibida.

    Extrovertido em suas conclusões, com alma introvertida em momentos mais íntimos, onde o Sr. e a Sra. King tiram a limpo suas disposições à causa negra e devoções conjugais. O que é para muitos um drama, tachado como melodrama, tamanha a sensibilidade, feminina ou não, para com o seio a nutrir e transmitir forças ao herói em frente a Casa Branca, num discurso de políticas igualitárias histórico, num dos momentos decisivos da história americana. Selma é um símbolo que vai além de justificar, por sinal, apenas o nome da cidade onde os negros foram primeiramente reconhecidos como gente antes do resto do mundo, assim como o bairro Castro, em São Francisco, o foi para os homossexuais, e todas as veredas ainda a se tornarem marcantes para “populações inferiores”, no futuro. Assim, a partir de tais verdades compartilhadas ao leitor, nenhuma tecnologia evitará que o futuro seja o espelho do passado, enquanto quem usa verde desprezar quem gosta de amarelo.

  • Crítica | Quero Matar Meu Chefe 2

    Crítica | Quero Matar Meu Chefe 2

    Quero Matar Meu Chefe 2 - Poster BR

    Após os acontecimentos de Quero Matar Meu Chefe, o trio protagonista torna-se famoso ao participar de um programa de entretenimento matinal para falar sobre a sensação de ser seu próprio chefe, invertendo o paradigma do episódio original. A direção de Sean Anders diferencia-se demais da do anterior, Seth Gordon, por ter uma linguagem bem mais popular, a começar pelo fracasso de inserir uma tentativa de empreendedorismo de Nick, Dale e Kurt (Jason Bateman, Charlie Day e Jason Sudeikis respectivamente), transformando os três no centro da patetice da fita.

    O novo algoz do grupo é o magnata Bert Hanson (Christoph Waltz), um alto investidor que tem a chave para o sucesso dos protagonistas, podendo alavancar o produto que eles inventaram para, enfim, tirá-los do fardo de ter de trabalhar com patrões. A recusa inicial de seu filho, o jovial Rex Hanson (Chris Pine) é devido ao investimento considerado de alto risco. Logo, a persona de Bert se mostra tão controversa quanto a de seus antigos patrões, emulando a personalidade imbecil e incluindo um golpe financeiro.

    Após uma reunião sem qualquer apelo à realidade, os personagens decidem se vingar de Hanson, pensando em assassinato – artifício impossível para eles, inaptos – ou um sequestro do filho do milionário. Para prosseguir no plano, eles decidem pedir conselho ao único assassino que conhecem, Dave Harken (Kevin Spacey), o qual está preso e faz questão de humilhá-los, tratando-os como os idiotas, o que realmente são, ao agirem de modo tão infantil na parte 2. O comportamento do grupo era o mesmo de pessoas normais, que agem imbecilmente perante as situações nas quais não estão acostumados, como americanos medianos com o objetivo de assassinar pessoas próximas. O que antes era reação normal torna-se um comportamento padrão, o que é claramente desagradável e demasiado óbvio.

    A edição do filme, com narração e destaques dos defeitos dos personagens, é abandonada, fato utilizado principalmente para diferenciar o trabalho de Anders ao de Gordon. Com isso, um dos pontos mais charmosos do primeiro filme se perde, com o formato voltado para uma comédia de erros pura e simples, uma fórmula que lembra muito a de Se Beber, Não Case! Parte II, obra que explora personagens conhecidos do público em situações ainda mais controversas do que as vistas anteriormente.

    Apesar da tentativa de explorar outra vertente, não há nada de inovador na produção, pelo contrário. Quase todas as situações são repetidas, desde o já comum comportamento de Jason Bateman, que faz de Nick ainda mais parecido com o inseguro protagonista de Arrested Development, Michael Bluth, até os absurdos mostrados em tela. Mesmos as reviravoltas, que visam perverter os arquétipos de vilões e mocinhos, soam bastante forçadas. Sequer a pseudo-mudança de gênero para um filme de assalto, debochando de filmes recentes, como Truque de Mestre, salva o roteiro da mediocridade em que estacionou.

    O último dos plot twists até chega a surpreender, uma vez que os elementos antes mostrados não faziam desta reviravolta algo plenamente previsível. Alguns dos dramas vividos no final de Quero Matar Meu Chefe são reativados, com direito à repetição de papéis de Jamie Foxx como Motherfucker Jones, e Jennifer Aniston como a ninfomaníaca Julia Harris. Apesar deste ser o momento mais engraçado e nonsense do filme, não chega ao ápice de justificar os excessos dos quase 110 minutos de exibição, que, retirada a quantidade exorbitante de excedentes, mal completaria uma hora de exibição.

    Quero Matar Meu Chefe 2 é bastante inferior ao seu antecessor, como já de esperar, mas falha demais ao tentar fugir de um estereótipo para se prender em um ainda mais vexatório e repetitivo, em que até a química dos três interpretes é decrescida apenas para fortalecer o estabelecimento de uma franquia, isentando o produto final de qualquer substância e conteúdo relevante.

  • Crítica | Sem Direito a Resgate

    Crítica | Sem Direito a Resgate

    Sem Direito 1

    Sem espaços para introduções maiores – que não a ação contínua – Sem Direito a Resgate emula as características de seu título original, Life of Crime, ao exibir um panorama cômico da vida bandida na história norte-americana, indo desde as ações de meros batedores de carteira até as fraudes de grande porte, cujas somas acumulam muitos zeros à direita.

    O início em forma de prólogo mostra dois vigaristas, Louis Gara (John Hawkes) e Ordell Robbie (Yasiin Bey) aplicando pequenos golpes em pessoas que se julgam mais espertas do que são. O método que utilizam é bastante modesto, sem qualquer sofisticação ou prévia. Nas cenas subsequentes, uma esposa submissa, vivida por Jennifer Aniston, sofre as agruras de viver com um esposo turrão. Margaret Dawson não faz ideia da posição privilegiada que ocupa, já que não tem qualquer ingerência nos negócios de seu marido, Frank (Tim Robbins), que secretamente é o cabeça de um negócio de desvio de dinheiro para contas bancárias clandestinas. O destino dos dois núcleos se cruza quando Ordell pensa em raptar a dona de casa desconsolada, para tentar conseguir um resgate.

    Maior do que qualquer possibilidade de isolamento à força, típica de ações em cativeiro, é o vazio existencial em que se encontra Margaret, se sentindo sempre solitária pela atenção que jamais chega por parte de seu cônjuge. O drama da personagem é comum a de muitas mulheres da atualidade e da época retratada no filme.

    O trabalho de reconstituição de época é bastante esmerado: nota-se não só nos belos cenários e figurinos, como também nos modos e no jeito de andar de cada um dos personagens. Tudo foi milimetricamente calculado para apresentar um efeito paródico, condizente com o saudosismo mas sem quebrar a empatia do espectador com os pequenos dramas diários do roteiro, fazendo de cada uma das gags cômicas engraçadas de fato, uma vez que o destino dos personagens é importante para o seu público.

    As piadas do filme ocorrem “apesar” da narrativa linear, com pouco humor nonsense, mas ainda assim de bom gosto, especialmente por explorar a hipocrisia presente nas relações do americano médio de uma maneira comedida, destacando o egoísmo e individualidade como principais fatores para o distanciamento sentimental entre os iguais.

    Há uma série de eventos entrópicos, que brincam com questões como infidelidade conjugal, suborno, tentativas de homicídios, claro, abordadas por uma ótica humorística, sem se levar a sério. A trilha sonora aumenta ainda mais o clima de deboche ao apresentar músicas românticas nos momentos onde a frieza dos crimes deveria prevalecer.

    As reviravoltas do roteiro, típicas de uma comédia de erros, inverte alguns dos arquétipos apresentados no início do filme, maximizando a sensação de que a trama foi construída a partir de improvisos ou de uma roleta russa de eventos loucos. Em certos momentos, a obra do diretor Daniel Schechter faz lembrar os primeiros filmes de Guy Ritchie, sem a violência gráfica de Snatch – Porcos e Diamantes e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes.

    Outra referência notória caracteriza-se pelo formato narrativo de Fargo, especialmente nos pontos onde há personagens amorais, cujo comportamento errático faz com que seja impossível torcer para cada um deles.  A volúpia pelo dinheiro fácil transforma as escolhas dos personagens, levados a uma vida marginal, subvertendo – outra vez – o estigma de sequestro trocando-se a vítima mas permanecendo o mesmo fornecedor do resgate. Exceto as extensivas repetições, Sem Direito a Resgate é uma boa comédia, mas de fácil esquecimento, não sendo mais lembrada cinco minutos após o encerramento.

     

  • Crítica | Sniper Americano

    Crítica | Sniper Americano

    Sniper Americano - poster internacional

    O chamado sonoro, anunciando a ação antes mesmo de qualquer personagem aparecer na tela, guarda as intenções de seu diretor em reprisar um tema que para ele é caro. Sem filmar dramas relacionados a conflitos armamentistas desde O Destemido Senhor da Guerra, Clint Eastwood apresenta uma nova versão da guerra ao terror – fazendo às vezes de Kathryn Bigelow – em Sniper Americano, utilizando uma figura masculina como ponto central de sua trama, diferente do que ocorreu com o recente A Hora Mais Escura.

    Chris Kyle, vivido por Bradley Cooper, representa um soldado fiel aos preceitos de sua pátria e à bandeira das forças armadas. Atrás da compleição resoluta, esconde-se uma psiquê frágil de um homem que se tornou bruto pela rígida criação conservadora e religiosa de seus pais. Desde cedo, o personagem é doutrinado a pensar que o mundo é habitado por criaturas maldosas. Na infância, os avatares desta perversidade eram prioritariamente os bullyers, às vezes alcunhados de “lobos”, revelando uma concepção baseada em um engodo que escondia o prejuízo que a superproteção do pai tinha pelo garoto.

    A personalidade de Kyle é baseada na fragilidade de espírito, que causa nele dificuldades de expressar seus sentimentos. O modo econômico com que Clint filma tais factoides talvez faça o analista desatento não perceber que o recurso não é inferido por pobreza de narrativa, mas sim por apego ao material original,  o livro Sniper Americano: O Atirador Mais Letal da História dos EUA, autobiografia que baseia a obra. A narrativa acompanha o protagonista enfatizando a simplicidade de espírito de sua personagem, emulando a frugalidade de sua alma.

    Os cortes rápidos, variando entre os dias que Chris passa nos alojamentos e as lembranças que tem com sua amada, Taya (Sienna Miller), fazem lembrar os melhores momentos de Billy Wilder. No desértico campo de batalha, ou nas estalagens verdejantes onde o treinamento ocorre, Chris recorda-se das doces memórias, daquilo que poderia motivá-lo a voltar vivo, além do patriotismo exacerbado e o medo fomentado pelo modo de governo do Partido Republicano diante das tragédias de setembro de 2001, artimanha essa que justiçaria qualquer barbarismo em terras estrangeiras, validando o revide àqueles que impingiram o mal à nação, independentemente de serem alvos fracos na visão dos machistas e xenófobos que inspiram e delegam ordem aos alistados.

    O decorrer das operações revela uma confusão visual causada pela caça aos inimigos islâmicos, visualmente agravada pelo efeito do breu da noite, e emocionalmente piorada pela discussão moral a respeito dos vitimados pelas ações dos fuzileiros. Apesar de algumas (raras) exceções, a maior parte do modus operandi militar é registrado de modo contemplativo, como se direcionado a um espectador desconfiado.

    A situação emocional se complica para Chris, que muito antes do desfecho já é considerado um herói de guerra, idolatrado por alguns veteranos, cujas vidas foram radicalmente modificadas pelo tempo em que permaneceram em combate. Ser agraciado por estes se torna um incômodo visível, ampliado pela forçada ausência em seu recentemente formado núcleo familiar. Assistir de longe ao crescimento dos filhos faz com que ele discuta internamente a validade de seu modo de vida.

    É curioso que um filão antes muitíssimo utilizado pela dupla Menahem Golan e Yoram Globus e sua Cannon Films esteja atualmente recebendo tanta atenção por parte do cinema de alto orçamento americano, quase sempre com um caráter revisionista, de forte crítica ao expansionismo imperial imposto pelos Estados Unidos nos últimos anos. Talvez a questão a ser mais discutida é o alvo desse tipo de reprimenda, já que Comando Delta, Desejo de Matar e Invasão U.S.A são filmes feitos quase que exclusivamente para transferir o ódio, antes dados aos nazistas e comunistas, para os islâmicos e árabes, filhos de Ismael, portanto “usurpadores da promessa a Abraão”. Proveitoso seria se os filmes norte-americanos refletissem sobre isto, ao menos como mea culpa.

    A filmografia de Eastwood visa discutir lados diametralmente opostos do belicismo, a exemplo de A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima. Em Sniper Americano, o diretor utiliza o símbolo da caveira do herói da Marvel, o Justiceiro (Punisher, no original), personagem cujo passado inclui um trauma na Guerra do Vietnã, com pecados morais bastante semelhantes aos de Chris, ainda que a abordagem que Cooper apresenta em seu papel possua mais nuances, mais detalhes e mais humanidade, muito bem mostrados no quarto final do filme.

    Apesar do exagerado ensejo presente no meio da fita, visando enfatizar os espectros familiares do biografado, é o minimalismo do realizador que predomina em meio à análise do material final. As cenas de ação são bem coreografadas, imitando um número de balé, ode dada ao deus da morte, uma divindade idealizada e distante do pragmatismo de quem analisa o panorama político de um ponto longínquo.

    Sniper Americano se propõe a ser um relato sobre os que se entregaram de corpo e alma a um ideal, a defesa da nação, mesmo que os motivos para tal sejam amplamente discutíveis, e ainda que tais situações espinhosas não sejam contestadas, como se esses assuntos complicados orbitassem um nível acima do pensamento rasteiro dos soldados.

    Passadas duas horas de filme, é revelado o destino do protagonista, cuja aura de conspiração envolve-o até a subida dos créditos do filme, não sem antes mostrar a bandeira norte-americana tremulando vorazmente, mais uma vez louvando a bravura dos soldados. Pesa contra o fato de o clímax ocorrer aproximadamente 30 minutos antes do filme se encerrar, fazendo com que todo o restante da película mostre o deslocamento social do soldado e um acontecimento fatídico cerceando sua vida sem qualquer possibilidade de ápice. O heroísmo do sniper até tenta ser resgatado nas cenas em que ocorrem as homenagens aos seus feitos pelas ruas dos EUA, o que por si só é muito pouco diante de toda a pompa anterior.

  • Crítica | Madame Satã

    Crítica | Madame Satã

    Madame Sata - Poster

    A introdução escolhida pelo cineasta Karim Aïnouz mostra o rosto de seu personagem biografado, em um close das feições enrubescidas, nos inchaços causados pelo impacto da pele alheia sobre o rosto, hematomas de brigas físicas que visavam cercear seu espírito livre. Acompanhada da forte imagem, há uma narração do relator do conto policial, que verborragicamente define todos os pecados de João Francisco dos Santos, o Madame Satã, assinalando especialmente o crime de andar com quem anda, de frequentar os lugares mais desqualificados do Rio de Janeiro acompanhado dos maiores e piores maltrapilhos cariocas, de categoria que alcançam níveis baixíssimos.

    Qualquer ato motivado pela crença na impunidade, ao ferir prostitutas, homossexuais e outros seres que habitavam o centro da Cidade Maravilhosa, é espantado pelos golpes capoeiristas do personagem. Lázaro Ramos dá vida à figura lendária dos anos 30, capturando, inclusive, nuances de comportamento contraditórios, como a de macho alfa, impositor, dono da força bruta, em paralelo à orientação homoafetiva, destruindo o estereótipo de fragilidade homofóbica, movido basicamente pela prática misógina do macho de julgar-se superior.

    O estado mental indócil do “leão de chácara” respinga em sua personalidade, revelando um homem temperamental, incapaz de conter-se ao presenciar desrespeito e desaforos proferidos a si ou aos que estão ao seu redor. A destemperança de sua alma se alastra pelas ruas do Rio, concluindo-se em confusões em bares, botecos e casas frequentadas pelos ricos. Ecos dos maus-tratos que sofreu durante a vida inteira, a rejeição causada por sua condição acumulada de pária, amalgamando o arquétipo do preto e do gay.

    Os tempos mostrados em Madame Satã eram mais simples, onde a punição ocorria somente com os secularmente excluídos. A polícia perseguia quem não tinha dinheiro, sem haver chance de defesa de quaisquer direitos se não fosse por parte dos ditos cidadãos de classe média, enquanto todo o restante era inimigo. O argumento de Karim Aïnouz e seu grupo de roteiristas é tristemente atual, retratando o quão punitiva pode ser a audácia do oprimido, com a diferença básica da figura que desacata a autoridade dos tratantes fascistas.

    A fotografia delicada de Walter Carvalho marca um mundo colorido que teima em ter gritantes colorações, apesar da névoa cinza que teima em pairar sobre as cabeças dos personagens, a alegria que predomina mesmo diante do preconceito que habita os corações e mentes dos conservadores. A direção tenaz de Aïnouz prossegue discutindo cada argumento fajuto do comum homem homofóbico, exibindo perseguições que vão além de qualquer exibição artística, mostrando que nem sempre o entretenimento é capaz de apagar a mancha que é o pensamento pequeno de quem se julga superior unicamente ao sentir atração por seres do sexo oposto.

    Os últimos momentos retratam toda a personalidade revanchista de João Francisco, fazendo o biografado retornar à cena inicial para cair na vala comum de outros assassinos, ladrões e bandidos, unicamente por dar vazão aos sentimentos reprimidos, jamais pedidos por ele, e interrompidos por agressores que tentavam em vão assassinar sua alma de artista e de homem livre.

    Ao exibir o incidente do biografado, mesmo com a pena que João sofreria, o papel do agressor é subalterno diante da boemia que predominava no ideário e rotina do personagem. No carnaval, após o cumprimento de sua sentença, o personagem ganharia de novo as ruas para enfim ter a glória brilhante que lhe era de direito, ao som de fanfarras e tamborins. Como a figura máxima do carnaval carioca, ela exibe-se já sem medo, evoluída, triunfante em gênero e sexo, como a princesa do asfalto que era. Ao contrário do que pressupõem a introdução e epílogo, não há valorização da lei ou do Estado comum sobre a identidade do homem, e sim uma ode à libertação e livre expressão da natureza sexual humana.

  • Crítica | Attila Marcel

    Crítica | Attila Marcel

    Attila Marcel 1

    A dificuldade em se expressar, representada pela mudez do protagonista, tem efeito de comparação, de como a modernidade aos poucos tornou a comunicação algo cada vez mais raro de ocorrer de modo pleno. Attila Marcel é um filme francês que conta a história do jovem Paul (Guillaume Gouix), um rapaz que, pela orfandade, foi obrigado a crescer longe dos seus, criado pelos tios. Sua voz não é emitida devido ao trauma de ter visto seus progenitores morrerem, de modo que suas expressões são concentradas no som que as teclas de seu piano fazem.

    Os dias comuns do protagonistas são registrados com cores vivas, cuja paleta salta aos olhos, causando um estranhamento primário, ainda que a adaptação ao clima lúdico seja rápida. Notável perceber a afabilidade com que Paul é tratado por seus parentes, cada um mais excêntrico que o outro, mas todos bastante prestativos ao promissor pianista, tomando cuidado em presenteá-lo de modo único, com dotes preciosos e condizentes com a identidade de cada um deles.

    Ao olhar uma foto de seus pais, o juvenil não esconde as pálpebras avermelhadas, sinal de um possível choro, que não chega graças à sua especial condição de se conter o tempo inteiro. Seus devaneios incluem a queda de percepção e desmaios involuntários. É desacordado que o pianista tem acesso às suas memórias reprimidas, dos tempos que era ainda bebê e do pouco contato que teve com seus pais. Desde cedo, faz uma enorme cobrança de si, com expectativas de que ele se torne um musicista de muito talento.

    A mudez do personagem principal torna-se um evento ainda mais curioso pelas cenas musicais presentes nos flashbacks inconscientes que ele experimenta. O fechamento desses momentos é realizado quase sempre pelo olhar de seu pai, Attila Marcel, vivido também por Gouix.

    A pessoa que mais se aproxima de compreender plenamente o músico é sua vizinha, Madame Proust (Alle Le Ny), que tem em comum com Paul o amor pela música, executando de modo rudimentar um pequeno instrumento de corda, tendo nas ervas a sua válvula de escape e o primeiro catalisador das ilusões de Paul. Seu jeito de feiticeira da natureza a aproxima de um arquétipo rpgístico de Druida, o elfo próximo da natureza que lança mão de psicotrópicos naturais e adora os sons da fauna e as entidades das matas. No caso de Proust, a crença é em Buda. Sua casa é repleta de plantas penduradas, fator que insere o público em um ambiente semi-fantástico sempre que a câmera passa por seus cômodos.

    Logo, as viagens levadas pelas ervas revelam o motivo de todo o receio de Paul, exibindo uma triste realidade, escondida no mais profundo de sua alma, um lugar que ninguém ousa pisar ou tocar. Quando ainda era um bebê, variava entre as brincadeiras infantis, e seus programas de cunho educativo, e a violência doméstica, que o reduz, já adulto, a um estado de impotência atroz.

    Após um apelo por escrito, Paul se vê diante de um novo paradigma, a inexorável opção – quase obrigação – de viver sua vida. Mais uma vez, ele se insere no campo do inconsciente, onde fantasia um misto de luta de boxe com tango, protagonizado por seus pais, em que a mulher tenta retribuir com afeto os maus tratos e golpes físicos de seu parceiro. O resultado final não fica claro, se seria aquela a realidade ou mais um autoengano.

    Com o tempo, os surtos pioram, fazendo o rapaz ter alucinações mesmo acordado, especialmente após começar uma grande apresentação sem poder contemplar Proust na plateia. A sensação de estar sozinho mais uma vez faz com que ele relembre a verdade, de como seus pais faleceram. Após ter contato com a realidade, o tampo do piano cai sobre seus dedos, encerrando ali a sua carreira musical, enterrando os sonhos de suas tias e o principal modo de expressão do musicista, mas sem lamentos por nenhuma das partes. Resignada, a família recebe a notícia quase como uma punição por seus maus atos.

    A reviravolta envolve a sentença da impossibilidade de Paul ser um pianista. Sua reinvenção começa de dentro, logo depois de assistir a sua antiga amiga em no túmulo. Dela, ele tira forças e inspiração para se reinventar, munindo-se do mesmo instrumento que a mulher, o que o fez revolucionar seu modo de ver o mundo e de “musicar”, preparando-o emocionalmente para o papel de pai e marido, algo que refugava o filme inteiro. O ciclo se fecha, e de modo belo, muito bem pensado por Sylvain Chomet.

  • Crítica | Aliens: O Resgate

    Crítica | Aliens: O Resgate

    Em 1979, fomos apresentados a uma das mais incríveis e aterrorizantes histórias de ficção científica da história do cinema. O diretor Ridley Scott e o roteirista Dan O’Bannon criaram Alien: O 8º Passageiro, uma obra-prima de atmosfera sufocante, aterrorizante e que possui uma incrível sensação de urgência, além de possuir ótimas analogias e mensagens embutidas. Não à toa, este Aliens: O Resgate demorou bastante tempo para ser produzido.

    O filme passa-se 57 anos depois do evento do original, com a Tenente Ellen Ripley (Sigourney Weaver) sendo resgatada e trazida de volta ao planeta Terra após passar todo esse tempo em animação suspensa. Após passar por intenso escrutínio, a protagonista é completamente ignorada pelos executivos da corporação Weyland-Yutani, que alegam não existirem provas conclusivas da existência do alien. Ela é informada ainda que o asteroide LV-426 está sendo colonizado. Logo após esses eventos, uma família encontra a espaçonave que a tripulação da Nostromo encontrou no primeiro filme, e o patriarca acaba infectado. Posteriormente, a comunicação com a colônia é cortada e uma missão militar é designada para descobrir o que ocorreu no local. Ripley então se junta a eles agindo como consultora.

    Há uma clara mudança de tom em relação ao primeiro. Ainda que a obra possua uma grande carga de suspense, o diretor James Cameron focaliza muito mais a ação, mesmo que boa parte do filme se passe dentro dos corredores da estação espacial que fora montada no asteroide. O diretor, um dos grandes nomes do cinema de ação e ficção científica dos últimos tempos, constrói toda uma atmosfera de tensão, para depois emendar uma série de sequências eletrizantes, especialmente no terço final, nas cenas que a tenente parte para resgatar a pequena Newt, e no seu embate final com a alien-rainha. Ao contrário das atuais películas de ação da atualidade, em que o desenvolvimento dos personagens é tacanho e apenas um pretexto para sequências de ação serem jogadas a todo momento na tela, em Aliens há sempre um momento para as relações interpessoais dos personagens. Nada muito aprofundado, mas suficientemente crível para que todas as motivações sejam bem expostas na tela e bem compreendidas pelo espectador.

    O roteiro idealizado por James Cameron, David Giler e Walter Hill é bem amarrado e faz melhor sentido nessa edição especial. Somos apresentados a uma cena deletada que trata sobre a filha da personagem de Weaver e que morreu idosa sem reencontrar a mãe, a qual estava perdida no espaço. Essa cena nos faz ter uma compreensão e aceitação melhor do sentimento materno que a militar rapidamente desenvolve por Newt ao encontrá-la na colônia espacial. A questão maternidade também acaba sendo bem exposta no roteiro, pois após Ripley destruir todos os ovos que continham os facehuggers (aquela espécie que abraça o rosto das pessoas e as “engravida” com o xenomorfo), a alien-rainha inicia uma espécie de vingança contra Newt, pois, em grande parte da batalha final, a criatura volta suas forças para matar a criança. Fica uma impressão de que ela deseja destruir a “cria de Ripley” visto que todas as suas foram dizimadas pela tenente.

    As atuações do filme são espetaculares. Weaver retorna muito bem ao papel que a lançou ao estrelato e domina todas as atenções para si. A atriz aqui se consagra como uma das personagens femininas mais fortes da história do cinema, e a indicação da intérprete ao Oscar de melhor atriz foi totalmente justificada. Lance Henriksen, o androide Bishop, também se destaca em tela, sem cair em nenhum momento na caricatura e sem repetir nenhum trejeito de Ian Holm, intérprete do robô do primeiro filme. Michael Biehn também está bem competente em cena. O restante dos atores, apesar dos personagens serem um pouco estereotipados, não compromete a obra e acaba se saindo bem nas cenas mais tensas.

    Toda a cenografia e o design de objetos foram inspirados por Syd Mead, designer de Blade Runner, e merecem ser elogiados. Mesmo que em 1986 ainda existisse uma predominância dos efeitos especiais práticos, tudo é meticulosamente construído e contribui para a imersão do espectador no ambiente muito bem explorado pelo ótimo trabalho de fotografia idealizado por Adrian Biddle. A trilha sonora composta por James Horner é eletrizante e até hoje é utilizada em trailers de outros filmes.

    Enfim, resumindo em um clichê, Aliens: O Resgate é uma montanha-russa. Uma experiência completamente diferente daquela proposta pelo seu antecessor, mas espetacular no mesmo nível. Uma obra-prima da ficção científica que merece estar sempre sendo revista e apreciada.

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  • Crítica | O Último Ato

    Crítica | O Último Ato

    Com profundos e furiosos olhos verde-escuros, um dos grandes atores americanos vivos, Al Pacino vive em baixa há quase duas décadas. Salvo três interpretações feitas em filmes televisivos, que lhe renderam indicações e prêmios, nenhuma das últimas produções envolvendo o ator foi suficiente para que pudesse se destacar como anteriormente, em personagens que se tornaram icônicas no cinema mundial. Talvez o último momento mais luminoso de sua carreira tenha sido em 1999 com O Informante, de Michael Mann.

    Representante de um estilo de interpretação extremada, chamada de overacting, o ator talvez esteja vivendo o declínio representativo devido ao envelhecimento físico. Diante das modificações físicas naturais do corpo, o semblante do ator ganhou mais vincos e, por consequência, uma imagem que sempre transmite desolação ou fúria. Além disso, papéis rasos de produções como Tudo Por Dinheiro, O Articulador, entre tantos outros filmes ruins ou desnecessários, não lhe deram o espaço para uma de suas grandes interpretações. Aos 74 anos, Pacino continua em cena, mesmo sem brilhar como antigamente.

    Adaptado do trigésimo livro de Philip Roth, O Último Ato estabelece um diálogo ativo com a carreira de Pacino, que representa Simon Axler, um consagrado ator de teatro que perde a habilidade da interpretação e, em um surto, se joga de um palco em meio a uma peça teatral. Dirigida por Barry Levinson, que trabalhou recentemente com o ator no premiado filme da HBO, Você não Conhece o Jack, a trama permanece entre o drama da personagem e o tradicional diálogo sobre a própria arte.

    Como Axler, Pacino entrega uma interpretação mais contida, ciente de que sua popular atuação explosiva seria incoerente com o declínio devastador do ator renomado. Conforme trabalha com um terapeuta sua inadequação perante a perda da capacidade interpretativa, o papel do ator se transforma em material filosófico para o longa-metragem.

    Comumente aproximamos dos atores o conceito de uma pessoa com talento e trabalhos suficientes para interpretar qualquer papel, sendo assim, transitando entre uma quantidade infinita de vidas e personagens. Trabalhando de maneira ativa com uma espécie de faz de conta, o ator também é observador atento que filtra reações diversas para espelhá-las em suas atuações. Não há um parâmetro definido que seja limítrofe entre vida real e universo interpretativo, com cada ator delimitando o quanto uma personagem influencia em seu cotidiano. Axler questiona a função do ator assumindo um distanciamento da realidade. Um observador que monitora a reação das pessoas, como se a vida fosse um conjunto de papéis cênicos. Um homem que perdeu a tessitura entre a ficção e o real.

    O talento interpretativo sempre visto como certo grau de erudição criativa também seria responsável pelo cansaço ao se inserir no cotidiano dos atores como um trabalho qualquer. A composição da arte sempre foi vista com parcelas de dedicação e suor, um amor estabelecido que, sem reciprocidade, se transforma em ato mecânico. Além das tensões internas, a indústria também promove, ou não, a continuidade do ator. Sabemos que muitos grandes atores chegam à velhice quase sem bons papéis, devido à demanda de um comércio que explora mais a juventude do que a terceira idade.

    Aos poucos, o drama sobre os limites de um ator se modifica para explorar o significado simbólico por trás da narrativa, a metáfora da humilhação da personagem central. Diante de uma história breve, originada em uma narrativa de aproximadamente cem páginas, Roth e consequentemente o roteiro adaptado acrescentam elementos demais para a discussão do crepúsculo da arte. A Humilhação, nome do romance e título original do filme, peca por excessos narrativos que vão contorcendo a vida da personagem de maneira demasiada, destruindo parte da realidade proposta por uma desvirtuação que suscita dúvida e deforma a intenção inicial.

    Em consequência da disparidade narrativa, o longa perde a potência e entrega um final comum a outras produções que fizeram da arte um objeto de reflexão e que ainda conseguiram manter a carga dramática. Uma pena para Pacino que, ao distanciar-se de uma interpretação explosiva, entrega um bom papel decadente, situação que, infelizmente, representa o estágio atual de sua carreira.

  • Crítica | O Imperador

    Crítica | O Imperador

    O Imperador 1

    Ambientada na época das Cruzadas (supostamente, ao menos) O Imperador conta a historieta de um guerreiro valente, de nome Jacob (Hayden Cristensen), que com seu cabelo moicano tenta salvar uma das crianças da aldeia, local que seu próprio grupo de soldados invadiu. Em meio ao saque, o personagem, que guarda o primeiro nome do neto de Abraão – em uma referência bíblica que salta aos olhos -, recebe os conselhos de um guerreiro mais experiente, Glenn, vivido por um Nicolas Cage com uma peruca assustadora, que discute aquela matança desenfreada, destacando qual seria o papel do deus na batalha entre humanos.

    O sangue que cobre a cabeça de Jacob faz todo o discurso edificante de Glenn ser razoável, uma vez que a culpa também paira sobre a cabeça do jovem vassalo. Porém, mesmo assim, continua procedendo como um general acéfalo, sedento por sangue, como se fosse a única fonte de sustento para o seu corpo e alma.

    O frágil roteiro logo viaja para outro continente, exibindo um império asiático cujos desígnios reais são interrompidos por uma alta traição familiar, em que o vilão Shing (Andy On) assassina seu próprio pai para impedir que o caçula Qiang (Lizin Zhao) seja empossado rei. A trama, vista em tantas outras produções, torna-se ainda mais banal quando, por uma coincidência do destino, Jacob acaba pairando sobre aquele lugar, entorpecido pelo ópio, mas ainda com senso de justiça. Após uma luta onde todo um show-off é apresentado, ele é convocado pelos sobreviventes para acompanhá-los. Prontamente, o guerreiro recusa, para fazer às vezes de Cavaleiro Solitário, unicamente para sofrer uma recaída e lembrar-se de seus deveres morais, ainda que sua motivação nada tenha a ver com os que protege.

    É curioso o modo como Nick Powell filma e conduz sua história, fazendo um uso indiscriminado da steadicam na tentativa de sofisticar seu próprio trabalho. Na maioria das cenas, o recurso exagerado pouco faz para diferenciar-se de tantos outros diretores genéricos de ação, ainda que sua perícia não seja de toda reprovável. Faltam conteúdo e relevância aos atos mostrados em tela, sobretudo a ausência de bons intérpretes, fazendo com que qualquer esforço para o Imperador não parecer uma piada seja absolutamente em vão.

    A interação entre o guerreiro caucasiano, que força a voz sempre que conversa com seus convivas, faz lembrá-lo da relação de mentor e mestre que teve com Glenn, ainda que nada do que seja mostrado em tela justifique qualquer edificação de espírito e autoglorificação enquanto figura inspiradora. Aos olhos do espectador comum, Jacob é apenas um guerreiro culpado, que se exibe como um exímio combatente, mas que ainda tem autoestima baixa, tendo no torpor da droga seu único refúgio. Nem bem é construída a figura de herói clássico, assim como o antiheroísmo é totalmente discutível pelos olhos de Lian (Yifei Liu) e do público.

    O combalido roteiro segue descendo o nível ao inserir aparições dos personagens sem qualquer justificativa. Glenn volta ao convívio de seu discípulo para indagá-lo sobre o sangue derramado no primeiro ato para então saber o motivo terrível que fez com que ele deserdasse. Após o retorno, logo começa mais uma batalha sem sentido, em que o exército inimigo faz uma emboscada aos heróis, para, enfim, ocorrer uma batalha final carregada de pieguismo.

    Apesar de ter uma reconstituição eficaz nos figurinos e cenários, O Imperador peca demasiadamente em termos de roteiro, o que faz duvidar se havia algo redigido anteriormente às gravações. A miscelânea de mortes desnecessárias produz uma mensagem tosca, destacando honra e patriotismo injustificáveis ante toda a breguice e anacronismo do texto final, em que sequer as cenas de ação fazem valer o esforço em ver a fita até o final.

  • Crítica | O Duplo

    Crítica | O Duplo

    O Duplo - nacional

    Já no início da trama, percebe-se uma mente conturbada por parte do inseguro protagonista, Simon. Em direção à sua rotina de trabalho, o homem é impedido pela estranheza que parece ter alterado seu cotidiano há pouco tempo. O caminho rumo ao seu emprego acontece em um vagão de trem, mal iluminado e insalubre, e ele prossegue, indo por uma estação subterrânea imunda e escura. Na chegada ao portão, ele é barrado, numa clara alusão à dificuldade que tem de se sentir pertencente a um lugar. A sensação que predomina é a de deslocamento da realidade.

    O aparente motivo do incômodo para Simon é a chegada de um novo funcionário, o qual lhe é grosseiro em um primeiro momento, e com mais aptidões que ele. James também é vivido por Jesse Eisenberg, e consegue representar a atuação mais moderna de seu intérprete, enquanto Simon se assemelha mais à faceta de associação comumente feita pela semelhança física com Michael Cera, emulando até a falta de dotes dramatúrgicos do ator comediante.

    A dualidade presente na interação entre Simon e James é apenas um aperitivo do universo que se desenrola ao redor das pessoas presentes na película. O universo mostrado no roteiro de Avi Korine e Richard Ayoade – que também assina a direção – guarda semelhanças visuais com muitas ficções científicas de baixo orçamento, especialmente nas referências midiáticas. As alusões textuais revelam uma realidade próxima da distopia, mostrando uma tirania movida por órgão privados, como a empresa do Coronel onde Simon trabalha. A companhia, em seus informes publicitários, deixa claro que ninguém é especial, um conceito menos autoritário que o de 1984, de George Orwell, visto que não é necessariamente proibido o contato entre humanos, já que a moral e autoestima destes não permitem qualquer relação mais íntima, graças à desmotivação geral.

    A lei não proíbe que casais se formem, mas a influência exercida pelo quarto poder – comunicação – faz com que as pessoas não se sintam aptas a tomar riscos, ao menos é essa sensação que é passada pela vivência de Simon. Quando ele resolve tentar a sorte ao sair com sua colega de trabalho, Hannah (Mia Wasikowska), a euforia tenta tomá-lo, em um dos poucos momentos em que cores vivas se permitem predominar na fotografia monocromática, mas o entusiasmo é interrompido pela inaptidão do rapaz e, claro, pelo azar enorme, que parece ser exclusividade sua, ao menos segundo a interpretação que faz dos fatos.

    É curioso como o único que se permite ter uma visão diferenciada do processo industrial e da modernidade seja exatamente o personagem cujo fracasso é mais evidente, como se o mau agouro lhe conferisse poderes. Logo, as contrapartes vão se unindo em favor de um bem maior, que é a abordagem ao belo sexo. O convívio entre ambos faz os fatos se tornarem ainda mais estranhos do que já vinham sendo.

    O modo como Ayoade conduz seu filme apresenta diferentes módulos de interpretação, tornando um “não mistério” a possibilidade de ser o par de iguais a mesma pessoa, porém não em uma curiosa opção, mas sim uma questão evidente. O enigma fica por conta da óbvia busca pela identidade, usando o roubo e a falsidade ideológica como sinais de uma possível insanidade, que por sua vez poderia ser fruto do constante escravagismo sentimental causado ao homem através dos constantes abusos da sociedade vigente.

    Eisenberg interpreta as duas faces do ser masculino, apresentando nuances e maneirismos distantes o suficiente para gerar no espectador a dúvida a respeito de suas reais intenções, que ganham ainda mais ambiguidade graças à nebulosa direção acompanhada de uma trilha sonora pontual. Tais elementos conseguem resgatar a essência de um suspense noir, fazendo com que as bizarrices inerentes ao espírito não sejam tão intragáveis aos olhares do público menos afeito à estética dos weird movies.

  • Crítica | O Amor é Estranho

    Crítica | O Amor é Estranho

    O Amor é Estranho - Love is Strange - Poster Internacional

    Dois anos após a beleza poética de Deixe a Luz Acesa, o americano Ira Sachs retorna às telas versando, mais uma vez, sobre o amor. O roteiro escrito em parceria com Mauricio Zacharias aborda a história de um casal que, após 39 anos vivendo junto, decide se casar oficialmente.

    Ben e George, interpretados pelos sempre excelentes Alfred Molina e John Lithgow, são homens maduros que possuem a rotina, coerência e estabilidade de um casal que há muito se conhece. Vivem naquele momento em que podem falar a respeito de tudo com o outro e se conhecerem intimamente, sem necessidade de julgamentos, nem mesmo para reclamações cotidianas.

    Ao efetuar o matrimônio, a profissão de George sofre um abalo. Músico de uma escola católica, ele é convidado a se retirar de suas atividades por não mais seguir o código cristão estabelecido pelo local. Mesmo que sua relação nunca tenha sido um segredo para pais, filhos e professores, cientes sobre seu parceiro, a personagem reconhece a impossibilidade de ir contra uma sagrada instituição que ainda condena tais relações.

    A estrutura de vida do casal é modificada. O casamento, que deveria ser a consagração máxima deste equilíbrio, produz, inconsequentemente, uma separação física. O casal se vê obrigado a vender o apartamento em que mora e, até conseguir um bom local para viver sob novas condições financeiras, se hospeda em casas de parentes. George permanece na casa de um casal de policiais, moradores do mesmo antigo prédio; enquanto Ben vive na casa de um sobrinho, ao lado de esposa e filho.

    A distância do casal demonstra as dificuldades que qualquer relação, mesmo que longa e duradoura, pode passar. As personagens estão fora de seu ambiente natural, em um momento sensível após o casamento, e sentem-se desconfortáveis por viver uma rotina que não a delas. Um local com festas quase diárias, no caso de George; um quarto dividido com o afilhado, sem um local para dedicar-se à sua arte, caso de Ben. Dia a dia, os dois tentam superar a distância obrigatória.

    O roteiro de Sachs/Zacharias aprofunda-se nas personagens sem deslocá-las das rotinas que as cercam, demonstrando nestes locais como situa-se o universo íntimo de cada família. Tanto o casal quanto a esposa do sobrinho de Ben trabalham com a arte. Um ambiente carregado de dedicação criativa que, normalmente, necessita de um espaço próprio para desenvolver-se. Passando boa parte do tempo em casa, Ben não encontra um local adequado para inspirá-lo, algo que também impede Kate (Marisa Tomei), esposa do sobrinho, dar prosseguimento ao seu novo romance. De maneira suave, o longa também faz essa breve reverência ao labor artístico.

    A trama apresenta a história sem focá-la em um drama específico. Os conflitos são vistos com naturalidade e se destacam também em um dos diálogos de George, em uma carta dedicada à sua escola: “A vida tem seus obstáculos, mas aprendi cedo que é melhor enfrentá-los com honestidade”. Um recurso rápido e explícito de apresentar a intenção por trás da história. Uma ciência de que os problemas na vida são naturais, e de que espetáculos dramáticos a respeito devem ser evitados para serem resolvidos da melhor maneira possível.

    Sachs trabalha também com qualidade a composição das imagens. Se no filme anterior prevaleciam ambientes escuros apoiando a indecisão da personagem central, neste as cores são sempre claras e os ambientes iluminados, como se representassem pelas imagens a maturidade estável e o brilho do amor do casal.

    (Para uma análise mais completa da obra, a partir deste momento revelações do filme serão apresentadas. Sendo assim, pare imediatamente se não quiser saber sobre o desfecho da produção).

    O estilo escolhido para representar a morte de um dos pares é bonito, metafórico e simples. Impressiona pelo impacto posterior ao descobrirmos a morte por intermédio de seu sobrinho em um diálogo. Na referida cena, o casal se despede em frente à escadaria do metrô, ainda vivendo em casas separadas. A personagem que sairá de cena é quem desce as escadas rumo ao subsolo para o transporte. Bonita metáfora de travessia acompanhada por um longo fade out que parece anunciar o final do filme. Mas esta cena encontra um par com o momento final, do sobrinho caminhando de skate ao lado de uma garota. Durante a trama, o garoto revelou ao tio Ben uma paixão por uma garota desconhecida. Assim, não só inferimos que a personagem encontrou-a novamente como o passeio é apresentado de maneira hábil, com a câmera posicionada às costas deste novo casal e contra a luz do sol. Uma metáfora oposta à anterior, explicitando a sensação de paz e iluminação do garoto ao ter este encontro.

    Litgow e Molina, que sempre se destacam pelas boas interpretações, apresentam um bonito casal maduro que transparece a cumplicidade mútua e um amor raro de muito anos. O Amor é Estranho é um drama bem equilibrado que não transforma a idade ou união em uma carga desnecessária de sentimentos, produzindo a naturalidade e a capacidade de lidar com as adversidades da vida de maneira orgânica, com apurada narrativa poética.

  • Crítica | Pássaro Branco na Nevasca

    Crítica | Pássaro Branco na Nevasca

    Passaro Branco na Nevasca - Poster

    O laço umbilical compartilhado entre uma mãe e seu filho possui efeito duradouro. A mãe se torna uma representação máxima de carinho e proteção, permanecendo nesta posição mesmo em fases da vida em que a criança não precisa de um grau ativo de resguardo.

    Pássaro Branco na Nevasca adapta o romance de Laura Kasischke, narrado pela adolescente Kat Connors (Shailene Woodley). O desaparecimento de sua mãe é utilizado como mola dramática. Uma circunstância que modifica a vida da personagem central. A história dá continuidade à vida após o desaparecimento da mãe e ilumina o passado.

    Como assistimos à trama pelos olhos e pela narrativa da garota, é perceptível uma carga emocional equilibrada entre ódio e remorso. Kat acredita que a mãe abandonou a família. De fato, há indícios que apontam para esta afirmação, ainda que a genitora tenha saído sem malas e deixado o carro na garagem. Ao falar a respeito da matriarca, notamos um desprezo sobre a relação da mulher com o pai, uma pessoa que sempre submeteu-se a ela. Eve Connors (Eva Green) é apresentada como uma mãe incrível somente quando se dedica ao cuidado da casa. É vista como uma mulher egoísta, que desejava ter uma filha como se quisesse um animal de estimação. As cenas que recordam a infância da garota corroboram esta afirmação.

    Após o registro de desaparecimento da polícia, a menina segue o cotidiano normal e se despede da cidade natal indo para uma faculdade. A cada verão, retorna para sua casa e, após anos do desaparecimento, recebe informações a respeito do suposto paradeiro de sua parente.

    Mesmo um tanto frívola, a representação da adolescente é coerente. Trata-se de uma garota que ainda busca sua identidade e um senso de justiça que somente a maturidade permite. Diante das modificações que um jovem sofre nesse período, é natural que, além do sentimento negativo pela perda da mãe, a garota sinta que foi agredida. Por este motivo, sente-se tão raivosa com o desaparecimento repentino. Os anos que separam o desaparecimento e a necessidade de saber o que aconteceu de fato são pequenos passos maduros que anulam parte da raiva para transparecer a saudade pela mãe. A verdade vem à tona, desejada ou não.

    (O parágrafo a seguir contém o desfecho da história. Não siga adiante se não quiser saber).

    Durante a trama, acompanhamos a visão da garota diante dos acontecimentos. A princípio, resignada por não saber ao certo o que sentir com o desaparecimento da mãe, em seguida mais emotiva com a passagem dos anos. Sendo assim, ainda que este elemento tenha sido alvo de certas críticas, parece natural a recepção de Kat ao descobrir que o pai foi, de fato, o assassino da mãe. O enfoque da história não é o caso do assassinato como um processo investigativo, mas sim como este desaparecimento, sendo por morte ou fuga, refletiu no interior da menina. Por isso, não há alteração da estrutura narrativa na solução do paradeiro materno.

    O drama termina mostrando como se sucedeu a morte da esposa. O pai era homossexual, ou ao menos estava tendo um caso homoafetivo, e poderia ser esta a explicação para a relação familiar ruim: a ausência de desejo que, por este motivo, gerava repúdio. Neste momento, ao descobrir o marido na cama com outro homem, Eve Connors ri como se soubesse que mais cedo ou mais tarde esta cena viria a acontecer. Envergonhado pelo desprezo e a falta de respeito da esposa, o companheiro a enforca em um impulso passional diante do riso frenético da mulher.

    A cena final, que revela os acontecimentos reais, tem intenção de chocar o público. Parece uma saída fácil para intensificar a obra, porém, mesmo sendo um apelo óbvio, produz a reflexão suficiente da delicadeza familiar, neste caso vista pelo olhos de uma filha que perdeu a mãe graças à violência paterna. Uma dissolução familiar completa.