É direito do nascimento de uma mulher ser atraente e encantadora. De certo modo, é seu dever. Ele é o vaso de flores da mesa da vida. – John Robert Powers, ator americano e dono de uma grande agência de modelos.
Essa crítica se inicia com a mesma frase que abre Always Shine, dirigido por Sophia Takal (Green) e escrito por Lawrence Michael Levine (Wild Canaries), porque se faz necessário. Não é só um resumo de tudo que o filme trata e desconstrói em seus 80 minutos, mas a manifestação sucinta da construção social catalisadora para os conflitos que se discorrerão, já que Always Shine acompanha duas amigas, Anna (Mackenzie Davis) e Beth (Caitlin FitzGerald), mulheres de personalidades distintas em um meio dominado por homens, que vão para uma casa isolada passar o fim de semana.
Anna e Beth são atrizes em diferentes momentos de suas carreiras; Beth participa de filmes B de terror e comerciais de cerveja, enquanto Anna ainda luta para encontrar algum agente. E ainda que a carreira da primeira não pareça ser um grande sucesso, é motivo de inveja para Anna, que tem bem menos que isso, o que faz com que se sinta inferior. Porém não só na questão profissional são distintas, e não somente assim Anna se sente diminuída. Por exemplo, uma das primeiras cenas do filme é a do teste de elenco de Beth, onde ela interpreta uma mulher sendo abusada, implorando, afirmando que faria qualquer coisa que o abusador quisesse. Ela faz isso em uma sala cheia de homens, que logo deixam claro a forma como o filme terá nudez extensiva e ela deverá se preparar para isso. As poucas vezes que levanta a voz, logo é interrompida. Anna, por outro lado, não se enquadra no papel, seja no da personagem rasa de filmes de terror, ou naquele que lhe esperam socialmente. Anna se impõe, mas não conquista o que almeja, logo se sente injustiçada. É a partir dessa dicotomia que o filme trata a posição da mulher na sociedade e a maneira que lhes é incentivada a competição entre si, especialmente no mundo do cinema.
O filme se desenvolve nessa constante zona metalinguística sobre atuação e performance. E se não fosse a competência de Sophia, talvez fosse um filme que se apoiasse e se satisfizesse indulgentemente nessa característica autoconsciente. A direção de Takal mistura elementos de thriller clássico e traços experimentais. Não se permite um único momento que não seja uma construção e intensificação para o próximo; seja pela montagem visual e sonora que prega pelo desconforto do espectador enquanto ainda o mantém intrigado, com toques de David Lynch, ou a própria interação entre as atrizes. As atuações de Mackenzie e Caitlin transitam nas sutilezas da apreensão e da amizade que se definha com o passar do tempo, tal como a sanidade. Essa interação apresenta seu ápice no momento que as personagens leem o texto do próximo filme de Beth.
O único aspecto do filme que deve ser tratado com cautela é sua parte final, isso porque com certeza causará decepção em muitos do público, ainda que, por mais estranho que seja, não se faz de forma forçada após tudo que foi desenvolvido ao longo do filme. É uma demonstração da coragem e confiança da diretora.
Eu nunca vi alguém me olhar com tanto nojo
Always Shine é um thriller psicológico de extrema potência social e experimentação cinematográfica. Corajoso, mas não prepotente. Suas personagens são a principal força do filme, que se veem impulsionadas pela direção segura de Takal e texto denso de Levine, que exibem suas competências ao fundamentar o terror e o suspense na natureza e desejo de Anna e Beth; suas percepções sobre elas mesmas e sobre a outra. Isoladas e cercadas pelos pinheiros e pela neblina, não há como fugir daquilo que brilha e deseja brilhar nelas mesmas.
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Texto de autoria de Leonardo Amaral.