Kanye West é um gênio. Ele faz parte da elite das celebridades norte-americanas, e como poucas consegue captar o que significa a ascendência social. O que fazer com toda essa influência, West conseguiu sintetizar um bom bocado dessa responsabilidade no ótimo My Beautiful Dark Twisted Fantasy, disco de 2010. Nele, boa parte da dinâmica da ambição que fizeram de músicos e atrizes as celebridades que se transformaram é destrinchada em uma dúzia de faixas a investigar as entranhas de quem flui o predomínio cultural do ocidente. Quanto custa o poder e o que é preciso ser e fazer para mantê-lo é algo que exclama de todas as faixas do álbum, porém, talvez seja a terceira canção que mais se destaca no contexto ideológico do trabalho do compositor: Power. Nas palavras do próprio: “Quando eu penso em competição, é como se eu tentasse criar contra o que já foi criado. Eu penso em Michelangelo, Picasso, nas pirâmides… É por isso que eu trabalhei por 5 mil horas numa música como Power”.” É como se o próprio cara, indiretamente ou nem tanto, edificasse e se pusesse num pedestal de influência e adoração onde se considera digno de singular louvor e admiração. A questão é que dos Kanye Wests o mundo nunca sentiu falta.
Num desses pedestais onde também se penduram os barões, ou como eram chamados antigamente, os figurões (“big shots”) de Hollywood, as inúmeras Xanadus das grandes celebridades da indústria (fazendo-se aqui alusão a icônica mansão de Charles Kane), onde os magnatas escondem sua mortalidade, seus vícios, suas fraquezas e tudo aquilo que não cabe na glamourização de suas vidas de holofote e vestidos e ternos de grife, o esnobe produtor de cinema vivido por Kirk Douglas, na atuação-chave da lenda, expulsa de seus domínios, aos gritos e empurrões, uma delicada atriz sob a fúria de um homem que sente seu império dos sonhos desmoronar com a presença de uma realidade cara e pesada, por demais, em suas entranhas. Nisso, a mulher sai aos prantos, passa por aquelas pesadas portas confidenciais, entra em seu carro e sai em disparada para longe dali. Traindo-a, seus nervos à flor da pele fazem com que ela perca o controle, e o veículo rodopia, fazendo com que o carro antes um símbolo de luxo e segurança passe a ser o convés lacrado da sua ruína.
Assim Estava Escrito (The Bad and The Beautiful, 1952) ganha sua metáfora perfeita nesta cena bem forte desse magnífico suspense dramático do versátil Vincente Minnelli, ou seja, um compêndio de personagens em conflito e choque permanentes nas condições selvagens que numa primeira vista, no impacto de toda a glória diária que essas entidades culturais são banhadas, simbolizam senão o amparo, o sucesso, o prestígio doce e inquestionável que a ficção oferece nesse universo do make believe, sendo que ao mesmo tempo as conduzem as agruras, a desgraça, desespero, culpa, danação e a um possível avesso a tudo aquilo que aquela terra alcançada por meio de tantos jogos de interesse e traição prometia. A morte, e até algo pior que ela: O esquecimento. Se Crepúsculo dos Deuses eternizou no que muitos consideram infilmável o lado mais perverso e insano da fama, o filmaço de Minnelli é uma carta de amor e ódio tão poderosa quanto (e para muitos críticos, consegue ser ainda mais cruel) a todo um glamour fundado e alimentado na luxúria pelo sucesso e infundado por todo o resto, afinal, onde todos são alguém, não há nada além de vencedores e perdedores.
A bem da verdade, Assim Estava Escrito mostra-se como uma junção substancial do clássico de Billy Wilder mencionado acima com Cidadão Kane, duas obras-primas fundidas em boa parte daquilo que ronda o perfil de um homem pérfido, seu destino e os relatos de quem convivia sob o seu poder de sedução e (auto) destruição (escrachado aliás não apenas nos vários momentos de ira descabida que Douglas, num exímio trabalho de ator no limite do over, parecia expelir da alma a cada repente nervoso de um homem sem escrúpulos junto as almas submetidas a seu ego descomunal). Minnelli consegue captar amiúde este ego e uma soberba generalizada em cada ação personificada no drama através da suntuosidade das mansões hollywoodianas numa reafirmação belíssima de época merecidamente laureada pelo Oscar, através de uma dezena de peles de animais desfilando pra cá e acolá, pelos diálogos sensacionais do roteirista Charles Schnee, vários marcantes inclusive na história do cinema, mas principalmente atinge a sensação de pessoas vivendo em constante estado de impunidade e onipotência por construir um manifesto do poder e de suas consequências numa perfeita, desumana e perpétua atmosfera de ressaca e dopamento.
Um estado de sonho se transformando em pesadelo e num ritmo ininterrupto, como só. É como se tudo fosse tão empapado, embriagado e convertido por aquele poder discutido na música de Kanye West que o único jeito de capturá-lo fielmente através da lente de uma câmera, no aspecto mais substancial do mesmo, seja embriagando-se também, junto de todos, e deixando que o luxo e as sombras da mise en-scène cuidem do resto. No mais, Minnelli fez no final da era de ouro dos grandes estúdios um dos grandes tratados filmados sobre a irreversibilidade de um destino. Entre outras tantas coisas, sobre o que não se pode mudar mais, sobre o carro da atriz que não consegue inverter seu caminho rumo a rota de colisão inevitável. Também é acerca de um fatalismo invisível e que opera a conta gotas, e pouquíssimas vezes tão bem-sucedido ao integrar a beleza trágica de um conto preto e branco sobre um universo que só é colorido, muitas vezes, graças a magia do cinemascope.
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