Escrito, dirigido e produzido por Matthew Heineman, com produção executiva de Kate Bigelow (Guerra ao Terror) e no páreo para o Oscar deste ano de 2015, o documentário Cartel Land analisa duas realidades na guerra ao tráfico na fronteira E.U.A. e México, a de José Manuel Mireles Valverde, médico cirurgião do hospital da cidade de Michoacán e líder das Autodefesas, uma milícia de origem popular nascida para combater inicialmente o cartel Los Templários próximo a fronteira com os EUA. Do outro lado da linha vemos Tim “Nailer” Foley, um ex-operário da construção civil com uma vida conturbada que se estabeleceu como um defensor do país contra os cartéis de drogas e imigrantes ilegais vindos do México. Os cartéis são evidenciados como grupos de extrema violência, decapitando pessoas e saqueando cidades inteiras, aproveitando-se da falta de policiamento local e do alto índice de corrupção na polícia mexicana. Ao verem-se desprotegidos, os moradores dessas regiões vêem na luta armada uma forma de resistência civil.
A narrativa se inicia com a visão de Nailer sobre aquilo que faz, e sua insatisfação com o uso do termo “Milícia” pela mídia e associações de seu ofício com grupos fanáticos nacionalistas. Apesar de Nailer demonstrar algumas boas intenções, o viés higienizador torna-se marcante em falas que demonstram o rancor pela perda de empregos para imigrantes legais ou ilegais. Embora Neiler mostre-se moderado, em seu heterogêneo grupo é possível encontrar pessoas com sede de sangue, e mesmo nos discursos mais apaziguadores a xenofobia e o medo de um eventual colapso americano marcam boa parte das falas e ações do grupo. Apesar disso, tanto politicamente quanto em termos de ação, a milícia de Neiler é retratada de forma mais ingênua e confusa que as milícias mexicanas, sem flutuar muito em relação à forma com que é mostrada para a tela. Já a milícia mexicana percorre um arco de glória e queda, mostrando ser apenas mais uma peça do sistema para substituir outras igualmente defasadas.
Inicialmente “Autodefesas” são mostradas como um poder emanado do povo de maneira legítima e com respeito ao povo, intensificado pela persona de aparência digna de El Doctor Mireles. Apesar de entregar muito mais tempo de tela ao núcleo mexicano, a direção sempre busca ecos no núcleo americano demonstrando que este é um sistema acoplado que não vê fronteiras. Após algum tempo sob o julgo do cartel mexicano, a população se arma e luta contra o cartel a partir de operações de busca a apreensão nas casas de bandidos conhecidos ao longo de diversas cidades, armando e treinando a população local para que assim as Autodefesas não ajam como poder paralelo e centralizado. Os rumos da malícia mexicana no entanto sofrem um revés quando El Doctor é atingido por um atentado e vê sua vida em risco. A perda do comando ideológico aparenta deixar um vácuo para que se estabeleçam vetores menos democráticos dentro da milícia, mas mesmo Mireles começa a demonstrar suas faces menos éticas, bem como os desvios de conduta e caráter dos recrutados pela milícia, muitos deles ex-integrantes de cartéis já extintos que alegam ter se recuperado. Logo ela se torna um poder paralelo agindo como cartel tal qual aqueles que se iniciaram no combate, atingindo níveis constrangedores de violência mesmo contra a vontade da população. O poder do povo e para o povo sumiu.
Com a pressão social e internacional, o presidente mexicano pede o apreço pelo Estado de direito e eis que os ânimos se mostram cada vez mais acirrados e a corrupção na região se mostra endêmica, atingindo diversas escalas de poder.
O diretor visa desde o começo construir uma narrativa para sua história, com arcos bem definidos e uma história para contar. Esta história é contada com uma cinematografia belíssima em tomadas aéreas do deserto e cenas de profunda intimidade, como a que, após um confronto entre o povo e o exército mexicano, a população dispersa-se e sobra em meio a rua apenas um senhor obviamente cansado e debilitado. Ele se mostra parado ali e a câmera o centraliza em toda sua fragilidade, demonstrando que independente do discurso que se propaga o povo será sempre o elo mais fraco desta corrente. A narrativa também é competente em fazer a desconstrução do El Doctor, mostrando que ele é, apesar de seus ideias, um homem em estado de falência ética ao despir seu charme político do início.
O que marca em Cartel Land é a aproximação do conceito de ideologia com o de fascismo. Se é fácil identificar uma postura fascista em caricaturas de ditadores ao redor do mundo, mais difícil é identificar o fascista com boas intenções. Este fascista adquire contornos mais sutis ao adquirir outras alcunhas como “cidadão de bem”, mas a semente fascista muitas vezes se esconde atrás de justificativas passionais extremamente plausíveis do ponto de vista prático e não raramente busca fazer o bem aos seus, pois nenhum fascista prega a morte, mas sim a liberdade e força de seu povo. A partir daí ninguém saberá quem vigiará os vigilantes.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.