Se uma parede cai e não há ninguém para ouvir, ela faz barulho? Na iminência da penetrabilidade dos muros que se levantam entre ideologias e indivíduos, quem perde e quem vence? Presumidamente o lado mais forte, maior; aquele que engolirá o derrotado tal como se espera que intenciona. Entretanto, não é assim que ocorre. O vencedor fará pior e se permitirá ser engolido para dominar o derrotado por dentro, expandir em seu interior até o estouro e após isso há nada mais se não os restos do que tanto se conservou por anos em uma intenção cara, assim como fazem as crises emocionais de qualquer pessoa levada ao seu limite, quando não será capaz de resistir até o final da contagem de 3, 2, 1, Hollywood.
Estados Unidos Pelo Amor é um filme escrito e dirigido por Tomasz Wasilewski (Arranha-Céus Flutuantes) que se passa na Polônia após um ano da queda do muro de Berlin. O país se vê em conflitos de identidade nacional pós-queda de seu modelo econômico enquanto se vê invadido pela hegemonia cultural ocidental, leia-se estadunidense, desde seus produtos até Whitney Houston. E é nessa situação de conflitos em escala nacional que quatros mulheres se veem lidando com suas próprias crises internas, com suas próprias invasões de sentimentos revertidos; amores que se antes lhe pareciam felizes agora as racham e revelam a assimetria entre a maneira que agem e aquilo que sentem.
As personagens são Agata (Julia Kijowska), que se vê infeliz em sua vida familiar com seu marido e atraída por um padre; Iza (Magdalena Cielecka), diretora da escola da cidade e amante do pai de uma aluna; Renata (Dorota Kolak), uma aposentada atraída por Marzena (Marta Nieradkiewicz), uma jovem professora de dança/modelo que se vê perdida em relação ao seu futuro. Todas as atrizes carregam uma certa melancolia, repressão, mas é especialmente nos núcleos de Renata e Marzena que as dinâmicas as elevam. Dorota e Marta brilham com personagens complexas advindas de uma construção narrativa cautelosa, mas que não pôde fazer o mesmo com Magdalena e Julia.
O roteiro, premiado no festival de Berlin, é extremamente coeso. O filme se divide em três partes focando em Agata, Iza e Renata, enquanto Marzena apresenta pontas em cada uma delas. A divisão se faz natural, com o encerramento de cada arco retornando o público ao passado através da repetição de uma cena a partir de outra perspectiva, uma reafirmação da pluralidade de experiências do contexto em que se inserem. Porém, não há exatamente o encerrar da história de suas personagens, e isso por si só não é um problema. Não escutamos o muro cair, mas vemos o rachar e a queda até pouco antes de se despedaçar no chão; os resultados desses eventos não interessam a Tomasz, entretanto esse fator falha em atingir qualquer resultado que transcende para além do já atestado sofrimento dessas vidas, o que pode fazer o filme ser visto tomando somente uma posição sádica. É uma abordagem anticlimática justa, que foge do convencional, mas não só por isso quer dizer que é bom. Ainda assim, a sucessão de eventos como foi executada pela montagem de Beata Walentowska traz um fluxo bastante agradável às páginas de Tomasz e tornam a experiência fluida.
O mais interessante da narrativa está nos significados daquilo que constrói despretensiosamente. Não é por acaso, por exemplo, que Agata se vê apaixonada por um padre, representante da religião católica, que teve forte relação com o movimento de liberação da Polônia em 1989; Iza tem que lidar com seu amante ter uma filha a quem escolhe dar mais atenção, ao mesmo tempo que Renata, uma idosa vivendo em ócio, apaixonada e fascinada por Marzena, uma jovem mulher que não tem noção de seu futuro e já se apropria da cultura americana, até mesmo contando em inglês 3, 2, 1, Hollywood em suas aulas de dança. Os homens, por sua vez, se veem ausentes do holofote, ainda que responsáveis, intencionalmente ou não, pelas calamidades sofridas pelo quarteto principal; existem alheios, as vezes como comentadores das novidades que chegam até a nação, ou clientes de um mercado de contrabando de fitas pornô. A partir do que já foi escrito, é possível perceber que, de certa forma, a juventude é tema recorrente no filme, pois é no novo que se encontram os herdeiros do caminho incerto que se revela, dos restos de um passado de costumes e tradições. Os conflitos dessas 4 mulheres resumem o espirito de uma nação lidando com o novo a partir do que se concebe como mais potente emoção, o amor, e esse sentimento em um estado de defasagem, tal como a cidade.
A arquitetura antiga em conjunto com a direção de arte (dos mesmos responsáveis por Ida) nos levam até uma terra que se vê em período de transição. Cores apagadas no branco dominante, exceto por algumas leves tonalidades de azul e verde que se demonstram mais presentes. As novas tecnologias e roupas se aproximam e se instalam, especialmente nos personagens mais jovens; as fitas VHS, os pôsteres de Whitney Houston estão por todos os lugares. Esse cenário é bem utilizado pelo diretor de fotografia Oleg Mutu (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias), que aposta em uma imagem visualmente agradável e intensamente estilizada, com uma artificialidade de intensos brancos. Quando não seguindo as personagens próximo de suas nucas em uma tentativa de nos colocar no lugar delas, mas que de tanto utilizada logo perde seu efeito e se vê somente como algo funcional, as cenas geralmente se realizam com estáticos planos longos e um posicionamento de atores que ressoa os relacionamentos de suas personagens tanto em relação umas com as outras como a si mesmas, como a cena de sexo entre Agata e seu marido, em que ambos transam fora do quadro, quebrando as regras de composição de imagem e transformando o que deveria ser algo apaixonante em ausência. Quando se veem sozinhas, a posição de atores no ambiente é suficiente para significar em conjunto com a atuação corporal o potente sentimento de isolamento e apatia. Entretanto, essa abordagem fria as vezes se mostra redundante e forçada, ainda que ressoe com o estado de repressão das personagens e se mantenha coerente na sua proposta.
É o amor do Leste o mesmo do Oeste? É o de antes como o de agora? Há de se aceitar a fadada impotência do amor tal como se aceita as baixas temperaturas de uma pequena cidade polonesa nos anos 90. Os Estados são aqueles que não aguentam até terem suas paredes destruídas, sejam os políticos ou os pessoais, mas os muros caíram muito antes da queda dos tijolos, caíram no momento do primeiro grito de uma rebelião, de uma insatisfação que foi crescendo da base até o topo e se fez pronto para a quebra. Da mesma forma que uma mulher insatisfeita com o presente que a reprime e com o futuro que lhe parece ser o agora, tão perto quanto o fim de 3, 2, 1, Hollywood.
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Texto de autoria de Leonardo Amaral.
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