Na edição 2018 do Festival de Cinema de Berlim, logo após a sessão do documentário Ex-Pajé, um manifesto escrito por lideranças indígenas, que o cineasta Luiz Bolognesi fez questão de ler, contra o etnocídio, ou seja, o genocídio étnico da população indígena no Brasil, sempre submetida a ganância das indústrias, empresas e ao desprezo das legislações brasileiras sobre seu povo e a demarcação de terras. E é justamente pela urgência do tema que Martírio se leva tão a sério.
Um documento de anos literais em busca de fatos, relatos e outras cadências a formar as condições que vivem um dos ícones de maior relevância quanto aos problemas e ranços estruturais da sociedade brasileira desde sua formação: A intolerância e o desdém dos engravatados e seus alienados urbanos pela ancestralidade e a humanidade, propriamente dita, daqueles que provaram o gosto e sentiram a textura das veredas de um Brasil descampado e virginal quanto aos impulsos animalescos dos homens brancos, sempre com a desculpa de progresso civilizatório para serem deliberadamente predatórios. Aqui, o cineasta Vincent Carelli — o longa ainda é codirigido por Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida — faz provavelmente o filme da sua carreira, pautado por quase três horas de denúncia, e resistência.
Resistência. Martírio, com o impacto de um trem na consciência humana que nos resta, a cada sequência nos deixa claro o que as notícias dos jornais nos anuviam: Não está tudo bem, não para todos nós – na verdade, para uma minoria seleta de nós, e mesmo nos domínios do senhorio ainda há turbulência, quase sempre causada por fatores internos. Não que os novos donos do país, antes usando bandeirantes, agora uma caneta a promover a matança da mais nobre identidade brasileira, sejam incapazes em suas togas e privilégios de controlar seus problemas e nisso, esqueçam dos outros, mas como nos é claro ao longo da projeção, a exclusão de direitos e as circunstâncias onde a exclusão se forma precisam ter sua fundações reforçadas, dia após dia, num minucioso e escandaloso processo que pode ser chamado de desbrasilização do Brasil.
Resistência. Acontece que a desumanização em cima do índio, em cima da população LGBT, cujos atentados ainda não foram criminalizados para podermos chamá-los de crimes, do jovem negro que a cada vinte e três minutos é exterminado de novo, e mais uma vez, no Brasil de sempre, necessita da banalização diária dos fatos. O quanto é injusto a nossa terra ser exclusivamente deles, sendo esta injustiça, seu fedor, que impulsionou um grupo de indígenas devidamente representados, ostentando sua identidade visual mais notória antes da mesma desaparecer, a ostentar imagens modernas da sua entrada do Congresso Nacional, vista pela mídia não como revolta, mas como “invasão”, como perturbação infundada da normalidade, em 2013, numa casa que diz-se de todos, mas que para entrar sem conflito você vai precisar ser homem, branco, eurocêntrico ou, no mínimo, um(a) estudante curioso(a).
Resistência. Àqueles que não entram, mas invadem simplesmente pela sua presença no local – lembrei-me dos rolezinhos na Casa Grande, de quem não aceita a senzala. Qual outro documentário contemporâneo da filmografia nacional infere criticamente, dada a força e propriedade de fala aqui atestadas, dilemas sem prazos de solução e tão engessados no social tupiniquim senão Martírio, de 2016? Por isso que, a um dos grandes filmes da década, brasileiro ou não, que elucida ao estrangeiro o que acontece nessas fronteiras, mas que dialoga sobretudo aos anais dum povo que se declara profundamente religioso, conservador ao poder das suas igrejas, mas que se recusa com veemência a preservar o que de mais sagrado (ainda) habita a nossa cultura, nossa identidade se alguém hoje se importa com essa dama de verde-e-amarelo, e nossa humanidade enquanto brasileiros, a esse documento fílmico e sobre o que e quem ele vem a tratar na tela: Glorificação, e resistência. Fantástico.
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